É tão difícil. É tão raro sustentar qualquer coisa nesta vida, cravar alguma certeza e nela permanecer inabalável. Como se condenados a tatear no escuro, conformamo-nos, no mais das vezes, em colecionar convicções tomadas de empréstimo deste mundo povoado de fraudes e fraquezas, de ciladas e mentiras. As trevas nos fazem crer que somos cegos. E com que facilidade bovina sucumbimos à tentação de ostentar o que não somos! Eis a nossa inafastável condição.
Mas a verdade segue, inobstante, absoluta.
Uma vez fisgado pelo encanto da machadiana mosca azul, asas de ouro e granada, ou como Ulisses em alto mar à deriva, sem um mastro para nele amarrar-se contra o canto das sereias da morte, o homem medíocre passa a viver, agora, para sempre atormentado, a um passo de confessar-se uma fraude inconfessável, enclausurado num dilema entre o ser e o dever ser, entre o autoengano macio e uma verdade totalitária, implacável perscrutadora de almas.
E o homem medíocre somos eu e você, todos nós que ostentamos uma exangue máscara de cera no lugar do brio. E macetamos a consciência obtusa onde já não penetra nenhum rumor vindo de fora, como num quarto fechado que abriga um defunto. O putrefato ar vesperal não circula.
O maior ato de coragem é sempre um movimento interior, um mergulho de efeitos pedagógicos no abismo de nós mesmos. O homem, conterrâneo da desgraça, se dissipa como fumaça diante da visão dantesca de um canavial de ilusões cultivadas no porão da alma escassa, de maldades colecionadas num arquivo abissal, que sabe que foram as dele. E olha, e passa, como quem finge não entender.
Só há um modo de ser livre: morrer para a morte e morrer para a vida. Tudo passa pelo esforço monumental, quase sobre-humano, de tirar do fundo desse abismo de remorso, vergonha e engano, a coragem para assumirmo-nos responsáveis por nossos pecados, diante do absurdo que é o Deus que não existe (que não precisa existir), porque antes de existir, Ele é. O existir cabe a mim e a você — poetas menores no teatro da existência —, o gênero humano desgraçado, a única criatura que se nega a si mesma, bestializando-se ao menor impulso carnal trazido por maresias de sonho e fantasia, quando a maré baixa dos tempos e eras faz baixar alarmantemente também o nível de todas as coisas que já eram medíocres.
É ali mesmo que habita — naquele porão mais escuro de nossa consciência — o monstro silencioso que conosco se confunde numa simbiose fundamental que há de nos acompanhar até o derradeiro suspiro, até o esticar das canelas. Talvez seja essa coragem a única forma possível de liberdade: a coragem para assumirmo-nos responsáveis por nossos pecados, reconhecendo em nós o monstro interior. Talvez seja essa coragem a única maneira pela qual se possa conhecer a verdade, crer de verdade, ser de verdade.
Deus sabe o quanto espero ser livre um dia.
Rafael A. Teles, novembro de 2023.
Commentaires