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Rafael Teles

SETEMBRO

Chega setembro e uma das poucas certezas que tenho nesta minha porca vida é a seguinte: para nós goianienses dos quatro costados, setembro não é o nome que se dá meramente a um dos muitos meses do ano, mas a uma catástrofe cósmica, martírio regionalmente universal. No Goiás, setembro inaugura o grande império babilônico do sangue seco no nariz, do catarro vitrificado na porcelana da pia, do pigarro hercúleo, do descongestionante nasal impotente, do calcanhar rachado de Aquiles e Odisseu, gregos e troianos, da pele que inflama em coceiras e do beiço que explode como um campo minado. É a apoteose da insalubridade solar, do ardido ar vesperal, do fumo que arde nos olhos e faz colar no fundo da garganta as mucosas do palato mole, deixando um acre sabor na boca. É assim todos os anos. Aí de nós!

 

Se agosto é a antessala do Inferno, setembro é o próprio Lago de Fogo e Enxofre. É a piscina do Satanás, o pula-pula do Cramunhão, a tigela pirotécnica do bandeirante Anhanguera, aquele diabo velho que, ao que tudo indica, deve ter passado por aqui quando era setembro. Só pode! — lamento em voz rouca. Pois é quando, dado o ciclo anual incontornável fixado em dias pelo Criador, uma neblina de vidro gasoso e fedorento arqueia-se, inadvertidamente, como um véu marciano sobre a terra, apagando da memória do homem a imagem bela do firmamento de zênite azul que um dia lhe coloriu a existência com cores vivas de pura alegria. É setembro, afinal. E entristece-se, lamenta-se em muxoxos mil o transeunte autóctone enquanto a baba seca prega-se-lhe ao canto da boca. Arqueia-se esquálido o homem neste formigueiro do cerrado, e não sabe o porquê. Deve ter jogado pedras nas Cruz.


Encastelado em burguesas colmeias de pedra, do alto do nono andar, o comedor de pequi e pamonhas rasga as próprias vestes, limpa fezes e cinzas e disfarça com água sanitária o fedor do bafo troposférico. Chega, enfim, um dos poucos momentos em que, exausto de si mesmo, odiando-se completamente, não se aguentando mais, o pobre-diabo goianiense considera-se venturoso por não poder medir com os próprios olhos a amplidão do horizonte já deveras tumultuado por tantas sentinelas de pedra que erguem-se-lhe por todos os lados como filhotes da Torre de Babel, tapando-lhe a visão lúgubre de um mundo plúmbeo.


Lá embaixo, aos que no olho do furacão desafiam a sorte para em troca receberem sua quota da ração quotidiana de dor, no vórtice da feira popular dos que se matam para viver ou vivem para se matar, no curso estático de um mês que não tem fim, concreto e fios negros de alta-tensão estender-se-ão eternamente sobre suas cabeças, como as teias venenosas de um aracnídeo-demônio que só em setembro sai do covil para alimentar-se de sangue seco, pigarro e pus. E como num frêmito, a pele frita no mormaço do asfalto, assa no estofo metálico do “eixão”, derrete em caldo azedo que das tripas escorre até a chinela, nos arredores da Rua 44 ou da Praça da Bíblia.


Setembro passará! — alguém me diz, traficando nacos de esperança que não quero comprar. Sete pragas passarão. Setecentos graus celsius. Se me lembro bem, quem pinta o sete é o Cramunhão! Sete de setembro sem memória. Viva setembro, meu irmão! Setembro é isto: um agiota que vem cobrar seus devedores até receber o último centavo, na marra, mediante expedientes escusos. Mas o goianiense não foge à luta, não olvida o credor mafiosíssimo e não se deixa esmorecer. E paga a sua dívida, paga certinho, paga tudo, até o último centavo, até a última gota salobra de suor. Até o ano que vem.


Ah, como eu odeio setembro!


Rafael A. Teles.

Goiânia, 5 de setembro de 2022.

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