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Rafael Teles

OS 33 ANOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL


Nesta semana a atual Constituição brasileira logra trinta e três anos de existência. Digo atual porque já foram tantas. Sete ao todo. Em 2022 o Brasil festejará os duzentos anos de sua independência. Grosso modo, portanto, de lá para cá já foram sete declarações constitucionais daquilo que entre nós convencionou-se chamar “o Estado brasileiro” no curto período de duzentos anos.


A atual “Carta Magna”, a mais prolixa dentre todas as já promulgadas, é mais nova do que eu. Digo prolixa por tratar-se de documento hipertrofiado que se mete em praticamente todos os aspectos da vida em sociedade, conferindo ao Estado, pela forca (sem cedilha mesmo) do Poder Judiciário, a palavra final sobre tudo o que é certo, sobre tudo o que é a verdade, até mesmo a respeito da cor de nossas roupas de bunda, se preciso for.


Tudo para o nosso bem, dizem. A isto é dado o nome de Welfare State — o Estado do bem-estar social. Um primor! O documento de nossa declaração constitucional de 1988 é de fato tão primorosa que, de seu nascimento para cá, já foi objeto de cento e onze intervenções — as chamadas emendas constitucionais. Fazendo-se as contas, temos aí a média de 3,5 emendas por ano. Uma colcha de retalhos que se atualiza no vácuo.


Mas quem sou eu para ousar dizer coisas assim tão petulantes e amargas a respeito do documento histórico de “refundação” democrática do Brasil? Um Zé Ninguém, certamente. Eu sei quem sou, mas não vem ao caso agora. Por ora, basta termos em mente que o Brasil não nasceu em 1988. Muitas águas pretéritas já correram. Águas profundas.


É por isso que filio-me a Joaquim Nabuco. Não falo eu; fala ele — desde a época em que ainda se produziam por aqui estadistas; não estatistas. Em seus dias de vida pública, o abolicionista Nabuco denunciava uma grave tendência nacional ao que ele denominou política silogística: “É uma pura arte de construção no vácuo. A base são teses, e não fatos; o material, ideias, e não homens; a situação, o mundo e não o país; os habitantes, as gerações futuras, e não as atuais.” (Balmaceda).


Dá para discordar de Nabuco, obviamente. Ao leitor amigo que eventualmente pretenda desafiá-lo, sugiro apenas que antes procure na CF/88 a açucarada definição do controverso salário-mínimo, e terá de reconhecer que Nabuco dispunha de dons quase proféticos, meio mal-assombrados até. O abismo entre a fábula salarial constitucional e o mundo real é comovente. Basta este exemplo por si só.


Ladeado estou, ainda, de Raymundo Faoro, que na década de 50 do século passado já denunciava as causas do “patronato político brasileiro” que, segundo ele, se constitui numa dissonância de ecos profundos entre mundos estanques que não se comunicam. Povo e Estado, entes diametralmente opostos. Erigimos um Leviatã para chamar de nosso, no desejo por construir com a lei, antes dos fatos, uma ordem política e uma vida pública que os costumes, a tradição e os antecedentes históricos não formaram, nem tiveram tempo de sedimentar e cristalizar.


Neste mesmo espírito também Roberto Campos já alertava sobre o texto constituinte que ele chamava de “dicionário de anseios e aspirações”. É que uma ordem social natural não pode ser criada ex nihilo por um punhado de burocratas que se denominam “poder constituinte”. Isto é uma mitologia. Desde o golpe político que instituiu a República em 1889, a ordem natural e pregressa que transcende a organização estatal — ordem essa cristalizada nos valores do povo brasileiro —, tem sido reiteradamente encoberta por tentativas artificiais de se recriar a nação mediante a promulgação de cartas constitucionais desajustadas no leito, como as vítimas de Procusto.


Se a teoria de Faoro acerca do estamento burocrático formado no Brasil (que abarcaria inclusive período colonial) estiver correta, o golpe republicano certamente em muito agravou o problema. É precisamente disto que também nos falava o jurista José Pedro Galvão de Sousa pela expressão “avatares do constitucionalismo”.


Não é por acaso que, semana passada mesma, o CNJ divulgou a funesta notícia de que para os vindouros concursos da magistratura serão exigidos dos candidatos conhecimentos em toneladas de matérias de cunho absolutamente progressista (ideológico, portanto), pautadas por órgãos internacionais através da tal Agenda 2030. Soberania nacional às favas, todos os futuros juízes brasileiros serão conclamados, doravante, a “empurrar a história” (como se isto fosse possível)! Para onde? Não sabemos.


O Direito no Brasil é, portanto, um esforço de legalidade meramente teórica. É como se todos aguardássemos sarcasticamente a criação de uma lei que tornasse todas as demais obrigatórias. Talvez seja mesmo por tal motivo que sequer o Tribunal Constitucional (vulgo STF) vela em suas decisões pela literalidade das normas postas em circulação no ordenamento jurídico, posicionando-se, pelo contrário, acima delas, e mesmo contra elas, a depender do tom político da discussão em torno da matéria.


Não bastasse a problemática já dada, nosso último arrombo constitucional (essa nossa aniversariante da semana) é fruto de uma já conhecida e bem experimentada corrente jurídica denominada neopositivismo — que confere caráter normativo a princípios abstratos, manipuláveis ao gosto do julgador. Em outras palavras: por aqui na Bruzundanga, jargões jurídicos ora ambíguos ora vazios de significado têm força de lei, e a lei objetiva em si tem força de nada. Jargões ambíguos justamente pela aplicabilidade concreta em praticamente qualquer coisa a que se queira defender, inclusive o seu próprio contrário.


Particularmente, gosto bastante — ou melhor, desgosto bastante — do chamado princípio da vedação do retrocesso. É que quem define (com o uso da força) o que é avanço ou retrocesso é o próprio freguês — ou melhor dizendo, o julgador, esse mesmo que, doravante deverá especializar-se obrigatoriamente em pautas políticas de esquerda. A meta é mesmo empurrar a história. O Direito a gente vê depois.


É por isto que no atual ecossistema político brasileiro é possível, por exemplo, sustentar teses jurídicas a favor do aborto (encampadas por juízes da suprema corte), fundamentando-as em princípios como o da dignidade da pessoa humana. Em nome da dignidade da pessoa humana, aniquila-se a pessoa humana no ventre materno — se preciso for, com requintes de crueldade. Cogitar o contrário é retrocesso, o que é vedado.


Sim, isto é possível. No Brasil tudo é possível.


Rafael A. Teles, outubro de 2021.

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