Há hoje uma espécie de acordo tácito, pacto não declarado entre a classe falante e a elite mundial dos vulgos donos do poder, agiotas do nosso futuro. A academia de ciclopes que por toda parte procura agora, numa sincronia de todos os meios e canais de convencimento das massas, explicar a vida e o mundo inteiro, por uma chave única: o ódio.
Tudo é ódio. Um ódio indefinido, volátil, e precisamente por isto, um ódio instrumental. Palavrinha mágica, palavra-gatilho que não sai da boca de todos os figurões, grossos batráquios da lagoa republicana que não se cansam de coaxar em uníssono. Toda a complexidade da existência humana jaz agora resumida a um único impulso, a uma palavra feia, que de tanto constar de chavões nauseabundos pseudocientíficos martelados o tempo todo em nossas cabeças ocas, já se esvaziou inteiramente do conteúdo, do referente, sem deixar todavia de causar ojeriza ao senso comum orientado pelo ruído das palavras, pelo mero zunzum que produzem.
Aprendi, com T.S. Eliot, que as palavras se deformam, estalam e quebram-se por vezes, sob o fardo. E hoje sinto que, se o mundo desaba, é que as palavras que o sustentam há muito já se quebraram.
Parece-me a mim que esse tipo de consenso planetário da luta contra o ódio não se traduz em intento orgânico, espontâneo, genuíno, mas sim no fruto de intervenções artificiais, de cálculos de engenharia social levada a cabo por quem pode por ter poder e que se deixa entorpecer pela megalomania de querer ditar os caminhos da humanidade inteira. Cegos guiando cegos. Afinal, numa sociedade que tanto afirma e reafirma o mito e as inúmeras superstições que acompanham o chamado pensamento crítico, como é possível que todos pensem de modo igual? Dostoiévski reduzido a Karnal, enxergando voluntariamente o mundo em preto e branco, profundamente ofendido pelo brilho das cores.
Eis que de repente o mundo se fechou, fez-se sistema hermético. E o ódio é senão a semente podre que dá significação à vida, dá-nos matéria prima para viver e material farto para o noticiário. É como se Deus desdobrasse, uma a uma, as pregas de seu manto, como bombas atômicas que caem sobre Hiroshima e Nagasaki. E quanto mais hermético fica, mais o mundo se embevece com esperanças plásticas, atordoa-se, põe-se a confundir virtudes com a capacidade de adesão a causas fantásticas, num espetáculo da exibição histérica de certificados de bom-mocismo subscritos por burocratas anônimos. E de repente todos querem mudar o mundo. Todos podem mudar o mundo. E é isto o que mais temo.
Mas e se alguém, de chofre, resolve sair de fininho desse tropel de paixões televisionadas e palavras de ordem, pondo-se à margem dele? E se alguém disser que o ódio não é tudo? E que o mundo está louco, já que resolveu tomar o todo pela parte, como o rabo que abana o cão? Quem da turba lhe dará ouvidos? E se este alguém disser que o mal sequer se resume a puro ódio? Que formas há mais requintadas de maldade, que o ódio não é o mal absoluto? E se dissermos, dois ou três, que o ódio é um sentimento demasiado humano, cuja erradicação da face da Terra é impossível (sobretudo em escala industrial), assim como não é possível erradicar as pernas, os braços e o coração sem matar a pessoa? O que dirá de nós a malta ensandecida e inimiga do óbvio?
E se um doido varrido qualquer, um pobre-diabo, ousar gritar por aí que ninguém, nem Deus mesmo, poderá jamais obrigá-lo a simpatizar-se tolerantemente com quem quer que seja, na mesma medida em que ninguém estará jamais obrigado a simpatizar-se tolerantemente com ele próprio? E se eu disser que o bem, por sua própria natureza, não pode ser imposto, e que o voluntário é livre por definição? E se eu mesmo, o pobre-diabo em questão, disser que pior que o ódio é a vaidade, ou a soberba, e que aquele que não odeia não ama? E se outro alguém, já completamente despudorado para os padrões atuais, meter-se a sussurrar por aí que respeito não é dado, mas conquistado, já que respeito se deve ao que é respeitável? O noticiário dará as respostas? Não creio. A filosofia é demais para o horário nobre.
Desassociada do espírito cristão (ele mesmo já tão odiado), a luta contra o ódio não erradicará do mundo o ódio, mas dará de bandeja, certamente a uns poucos, o monopólio do ódio, como prerrogativa exclusiva e direito fundamental.
A verdade é que a vida parecia fazer mais sentido quando Aleksandr Soljenítsin podia refletir sem receios sobre os motivos que levam o homem a tornar-se o carrasco de seus semelhantes. E concluir, movido por um tipo de compaixão por seus algozes, que ele mesmo, em outras circunstâncias, poderia estar no papel daqueles homens que resolveram colocar-se a serviço de ideias despóticas, impondo, pela força do ódio e pela ponta do fuzil, a desumanização alheia.
E eis aqui, pela pena do escritor russo, uma das mais belas imagens já registradas em palavras: há no coração de todos os homens, uma linha móvel, que separa as proporções sempre e inevitavelmente presentes de bem e de mal. Em outras palavras: a todos é dado um certo quinhão do amargo e do doce. E o homem mais santo também guarda no coração uma pitada de maldade, enquanto o mais vil, por mais vil que seja, também carrega dentro de si um naco de bondade. Estamos aqui, portanto, diante de uma conclusão pessoal de Soljenítsin após ser exposto à experiência do absurdo, do extremo, do ódio destruidor, transcendendo nada obstante o mal que se abatera sobre ele, sobre seu povo e sua pátria.
De igual modo, o mundo parecia mais real quando Joaquim Nabuco, o maior abolicionista brasileiro, ainda podia partilhar conosco suas memórias de infância envolvendo a triste e complexa experiência da escravidão, a partir de sua vida no famoso engenho Massangana, sem obrigar-se, contudo, ao uso das lentes reducionistas que hoje se nos obrigam. Nabuco pôde, assim — ao inverso dos sociólogos que dão hoje nauseantes aulas gratuitas na tevê enquanto narram jogos de futebol —, enxergar livremente a realidade em cores. Realidade que contrastava com o espírito da época, sendo por ele descrita magistralmente a sua relacão pessoal com a escravidão como uma espécie de devoção: “alguma coisa parecida com a dedicação do animal que nunca se altera, porque o fermento da desigualdade não pode penetrar nela”.
Onde caberá o ódio na experiência pessoal de Nabuco, nutrido desde a infância pelo leite preto que o amamentou? Não creio haver senão amor neste tipo de disposição de alma. Lamento que o mundo hoje não seja lido senão à procura de respostas fáceis para o inesgotável absurdo da existência. Me resta odiar essa banalidade abissal que nos afoga na superfície de nós mesmos.
Rafael A. Teles, junho de 2023.
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