Em apertada síntese, cláusula pétrea é como se costuma denominar a disposição contida em certas constituições, visando tornar intocáveis alguns direitos e normas de Estado. É nesse status de suposta intocabilidade que a Constituição brasileira de 1988 elenca “os direitos e garantias individuais”, conforme se lê no § 4º do artigo 60.
O jurista (ou profeta, como prefiro) José Pedro Galvão de Souza, em seu famoso Dicionário de Política, leciona que “ao configurar como cláusula pétrea os direitos e garantias individuais, a Constituição de 1988 oferece, no artigo 5º, extenso elenco de normas, todas supostamente imodificáveis, de que poderão originar-se, entre outros, intrincados problemas de hermenêutica.”
Dito e feito, eis que em pleno ano 2024 da graça de Nosso Senhor, a expressão “afastamento excepcional de garantias individuais” passa a proliferar-se, como piolho em cabeça de criança, nas decisões monocráticas tomadas sob sigilo por membro da Suprema Corte brasileira, cujo alvo são pessoas comuns que emitem opiniões em redes sociais, ora perseguidas politicamente e fustigadas como se criminosas fossem.
Diante desses fatos que notadamente nos últimos dias tornaram-se públicos em escala internacional, qualquer cidadão brasileiro que tenha ao menos dois neurônios em bom funcionamento e uma espinha dorsal capaz de colocar-lhe moral e fisicamente de pé, há de notar que, na supracitada expressão, a palavra “excepcional” é senão uma confissão do julgador de que a decisão proferida fere as ditas cláusulas pétreas constitucionais.
Isso porque, dada a vertente jurídica neoconstitucional em voga no Brasil, querendo manter ares de normalidade e segurança jurídica, basta ao julgador, no ato de decidir, fundamentar que tais ou quais medidas justificam-se por princípios etéreos, e não ferem, absolutamente, cláusula pétrea alguma — e assim fazer valer qualquer paixão iníqua que paute suas mais nobres intenções, sem precisar sequer admití-las. Tudo, ao melhor estilo republicano.
Há que se notar, ainda, que o caráter sigiloso de decisões desse cunho também revela algo de confissão involuntária do julgador acerca da natureza sabidamente sub-reptícia da medida.
Em outros dizeres, temos aquela ideia já tão macetada, batida e surrada, de que somos todos iguais, mas que uns são mais iguais que outros. Ou seja, a lei certamente não vale para todos. Exceções há que não a merecem! A única garantia é que não há garantia alguma. “— Ao vencedor, as batatas!”, disso diria o personagem Quincas Borba, filósofo machadiano do humanitismo.
Ora, quer dizer então que tudo isso se dá ao sabor do arbítrio, por luz negra iluminado, de uns poucos indivíduos quem têm, sobre todos os demais, o poder monocrático sobre a vida e a morte? Ai de nós! Como o torturador que decepa, um a um, os dedos do torturado, há hoje entre nós uma classe de funcionários públicos hipertrofiados que, confessadamente, e pautada por critérios meramente subjetivos, afasta “excepcionalmente” garantias constitucionais de uma gentalha sub-cidadã, assim considerada aleatoriamente por meras palavras ditas e opiniões reputadas inaceitáveis.
Há por aí quem tenha notícia de assassinos, traficantes, estupradores e ladrões, sendo tratados pela Justiça brasileira com tamanho rigor despótico de suspensão “excepcional” de garantias individuais?
Como bem sabemos, há quem chame isso de democracia, quer por ignorância, quer por interesses nada louváveis. Eu, a meu turno, chamá-los-ía de cúmplices da tirania, caso ‘inda pudesse ter alguma opinião.
Rafael A. Teles, abril de 2024.
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