Há quarenta anos sigo errante nesta selva selvaggia. Quatro décadas de puro talento e desconcerto. Por vezes talento, por vezes desconcerto.
Mil vezes na vida tive a oportunidade de reagir a este mundo como um mentecapto. E eu era a mera memória reativa de um bicho furtivo e desajustado, de imaginativa ingênua, paupérrima.
Mil vezes. Acachapantes! Não desperdicei nenhuma delas. Ainda hoje ecoam — porém, já com muito maior significação — as palavras de minha mãe, marteladas no fundo de uma gruta: “fazer a leitura do mundo em minha volta”.⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
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Já como quem se agarra à inocência doce de uma criança, vertendo vômito e confissões agostinianas, por raríssimas vezes tive as chances reais de salvar-me de mim mesmo, conscientemente comprometido com atos sacrificiais de boa-fé — virtudes perceptíveis que não eram mero fruto de emulação. E eu era o verão tardio de um sono umbigocêntrico, tomando de volta, lá do fundo de um buraco lamacento e mais frio que o próprio frio, a alma quebrada e a fé em desuso.
Que me importava amargar os prejuízos de uma biografia disforme, de uma auto-imagem vertiginosa? Aluno relapso que fui, cheguei atrasado na escola da vida. Mas e daí? Agora eu olhava e via, e via e enxergava! E o mundo se espraiava para fora do meu eu — fulgurante, como um campo de verdor infinito. Mas perto de mim, agora eu via, pessoas ao chão, entorpecidas, sonâmbulas, semi-mortas. A sociedade dormia, e a minha solidão era estar acordado.
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Raríssimas vezes. Fugidias! Não desperdicei nenhuma delas.
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E ao final, o que sobrará quando a vida resolver finalmente fechar as portas deste teatro encantatório? O que mais pesa nesta contabilidade paradoxal que não foi feita para fechar senão pelo selo de Deus? Pois é assim que tenho vivido. É só assim que sei viver: em frêmitos sangrentos, num esforço sobre-humano para manter-me acordado, entre o talento e o desconcerto. E há quem saiba viver de outro modo?
Se toda dissonância é uma preparação para a harmonia, agradeço imensamente àqueles que me aturaram até aqui. Deus lhes recompense, pois, a mim o Criador não deve absolutamente nada.
O devedor sou eu.
Rafael A. Teles, 23 de dezembro de 2022.
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