Creio ter já assimilado, em alguma medida, a lição de Percival Puggina que a nós outros conclama a não sermos pombas no meio de gaviões. O Brasil nos força a tanto, invariavelmente, todo santo dia. Aí de mim subestimar a rapinagem que nos rói até a medula nesse ciclo patrimonialista que se retroalimenta há séculos desde as mais altas posições de poder — da política à economia, da moral burguesa aos costumes da gente simples — e que resulta em praticamente metade da população brasileira sem acesso a saneamento básico, num dos territórios mais agraciados no mundo em termos de recursos naturais. É um feito indiscutível.
Convenhamos, nada obstante, que a fauna humana que povoa este fustigado país, em que pese deveras numerosa e muito vária em tipos predatórios, é também fecunda em indivíduos da mais alta tecnologia do engodo. Tomemos o exemplo do pavão. Que cauda! Que cores! Que belas penas! Que sedução! É pavão pra todo lado, para todos os gostos! Ocorre que o sujeito que se pavoneia demais, que se adorna todo de moralidade, de religião, de piedade, de sucesso profissional, com enfeites de muita etiqueta, inteligência e caridade, há muito também não engana, via de regra, este pobre-diabo que vos escreve. Fiz-me galo de briga, rinha a rinha, em meio a pavões e gaviões.
Neste século high-tech, a internet proporciona a todos um mundo de amplas vitrines, antes impensável, até então fora de cogitação ao cidadão comum. Não estamos acostumados a tanto. Uma gama de oportunidades, antes fora do radar, paira doravante ao alcance dos dedos, o que faz do mundo virtual um prato cheio para aves oportunistas, carcarás digitais de toda sorte. Um poleiro eletrônico, por assim dizer.
E não é de assustar que, num país de gente semianalfabeta dos quatro costados, as redes sociais possam abrigar tantos polímatas e sábios quanto jamais se imaginou existirem por aqui, em tamanha variedade, com tamanha verve, sempre prontos a guiar-nos, a preços módicos, até a verdadeira verdade jamais revelada sobre alguma coisa qualquer até então só por eles conhecida. Safos que são, apelam para sentimentos nobres, para o escrúpulo religioso, para os pais de família, o bem de nossas criancinhas, a moral e os bons costumes, para a tradição ocidental e o caralho. E pavoneiam-se de tudo quanto é virtude que se possa imaginar, desde que útil para fazer despertar em suas vítimas aquele incontido desejo mimético de ser o que não é, deflorando-lhes o bolso à revelia da razão.
Quem aí joga cartas? Das lembranças mais gostosas que tenho daqueles bons e velhos domingos em família, são as animadíssimas partidas de truco, em que meus tios quase se matavam, embalados pelo churrasco e pela cerveja gelada, em apostas das mais inusitadas, ancoradas em blefes teatrais. No jogo do truco é possível utilizar-se do blefe para fazer o adversário “pagar para ver”. Você sabe que está de treta, sabe que não tem nas mãos nenhuma carta de valor. E reafirma o blefe! — uma vez, duas, três, se preciso for —, subindo a cada vez o preço pela revelação da sorte grande. Essa possibilidade do blefe é o que faz o truco ser tão excitante, justamente pelo poder de uma persuasão enorme que se sustenta em nada mais nada menos que metalinguagem. Todo mundo pensa: “Não é possível!”, “Não, Fulano não tem tanta coragem assim, tamanha desfaçatez, tamanha cara-de-pau!”, “Ciclano jamais arriscaria num blefe tudo o que ganhou!” etc.
Mas para a nossa infelicidade, já na realidade cotidiana (life's a bitch, isn’t it?), no trato das mais diversas relações humanas, é plenamente possível e muito comum o uso do mesmíssimo expediente. Você sabe que está mentindo (quem mente sabe que mente) e, quando confrontado, reafirma a mentira com ainda maior desfaçatez, dobrando a teatralidade até então empregada em cima dela, ao ponto de praticamente acreditar no que diz, mesmo sabendo que o seu interlocutor também sabe que você está mentindo. A falcatrua tem nome: cinismo.
O sujeito que se pavoneia é, sobretudo, um cínico; e o cínico, um revolucionário, arrisco dizer. A literatura me fodeu, roubou-me a paz que ‘inda restava. Da leitura de Cortina de Ferro não me esquecerei, em que Marques Rebelo nos leva a um tour por alguns países da então União Soviética na década de 1950 , de modo a quase — e repito, quase! — deixar-se enganar pela ostensiva propaganda do Partido Comunista que, sob o pretexto de manter bem-informados a população e visitantes em geral, pavoneando-se de grandes feitos e maravilhosas obras de justiça social, pintava aos olhos de todos um mundo inexistente. Espelho, espelho meu: há mais curioso exemplo da relação umbilical entre o cinismo e a revolução, do que o meu?
Já que tratamos de literatura, vale trazer também ao nosso rol de exemplos um personagem de Aluísio Azevedo: o cônego Diogo, em O Mulato. Quem ler o romance verá que é exatamente essa mesma teatralidade cínica que move o personagem, quando se vê acuado dentro do quarto de Raimundo — o jovem mulato, filho de escrava, nascido escravo, mas formado doutor na Europa, e que acusa o religioso de ser o assassino de seu pai. Em resposta a tão severa imprecação, eis que o cônego se prosta diante do jovem, apelando para a injustiça de tais absurdos dirigidos a um velho decrépito que só respirava religião e coisas santas. De joelhos, o religioso pede para ser acoitado, fazendo-se de vítima e comparando-se a si mesmo ao próprio Cristo crucificado.
Seria de dar dó, não fosse o personagem um canalha em toda a linha, efetivamente responsável pela morte do pai do rapaz — com o agravante do uso do nome de Deus como ferramenta de manipulação social. Vejam aí a maldade duplamente qualificada pelo cinismo, sobretudo de pessoas que se arrogam ao papel de guias, de pastores do povo. Percebam como a literatura de ficção desenha possibilidades humanas que efetivamente se cumprem na realidade, como é o caso do famoso predador sexual espírita João de Deus, velho lobo da religião.
E não deixa de ser curioso como o próprio personagem de Aluísio Azevedo sabe que sua culpa se eleva ao quadrado, justamente em razão de sua posição de representante do sagrado. E mesmo assim, num descaramento monumental do qual até o diabo duvida, utiliza-se de tal circunstância como mais um instrumento retórico para manipular. É como se, em nome de Deus, matasse o próprio Deus, dentro de si mesmo. É quase inacreditável que isto aconteça, mas acontece. Basta um espírito quebrado e uma consciência tornada terra arrasada.
Há uma frase do professor Olavo de Carvalho que tornou-se muito conhecida. Dizia ele que “um homem de mentira não pode conhecer a verdade”. E eu me pego pensando nisto e imagino a minha consciência como um campo aberto, demarcado por uma série de travas, de limites os quais não devo cruzar jamais, sob pena de não mais conseguir retornar ao ponto anterior. Pode ser um absurdo, para nós, que alguém seja capaz de cruzar, não por mero descuido, mas com dolo explícito, os limites morais da própria consciência. Mas quem os já cruzou de tal modo, sinto dizer, já nem se lembra mais que eles um dia existiram, e por isto, não pode ser medido com a mesma régua moral de quem tem as travas devidamente fixadas, todas arrumadinhas, de pé dentro da própria alma, servindo-lhe de mapa do que se deve e não se deve fazer. O sujeito rasgou o mapa e jogou a bússola fora, julgando-a ferramenta sem utilidade prática.
Com o Príncipe Michkin, do romance O Idiota, de Dostoiévski, aprendi também em que consiste a diferença entre um homicida que sabe que agiu mal e aceita a realidade do crime que cometeu, reconhecendo-se culpado e digno da punição severa; e outro que não amarga a menor responsabilidade por ter tirado a vida de pessoas inocentes, não carrega o menor remorso e acha que está no seu direito de homicida, já que tem a consciência anestesiada por uma série de justificativas fundadas nalguma uma ordem moral alternativa que ele mesmo inventa e chancela como correta, da forma mais subjetiva possível. No exemplo de Dostoiévski, a pobreza.
Gente que pensa assim é mais comum do que supomos. Ou não há hoje em toda parte quem justifique o crime pela pobreza, a começar pelo atual Presidente da República? De um lado, o sujeito aceita a ordem do mundo, mesmo que não consiga nela enquadrar-se; do outro, a partir do mesmo ato, o cínico acredita, com sinceridade angelical, que o mundo todo é que deveria enquadrar-se à sua ordem particular. Se virar o mundo de ponta-cabeça é um desejo revolucionário, o cinismo é para o cínico — que igualmente inverte a ordem da realidade —, mera ferramenta, em nada falsa ou verdadeira em si mesma.
Quando um homem mente, ele mata uma parte do mundo. Se com cinismo diabólico adornado pelas teatralidades de um pavão, o sujeito dobra a aposta no blefe, muito mais fundo é o abismo da maldade em que se encontra e já não pode mais conhecer a verdade. E essa é a morte lívida que muitos chamam de vida. Vida intelectual, vida espiritual, conjugal, profissional etc. Eu a chamo de morte. Se também morro quando minto, enquanto continuar a morrer por ter mentido, poderei ter a certeza de que sou um pouco menos canalha do que os que já romperam as travas da consciência e delas nem se lembram mais. É essa corrupção de ideias e de convicções que faz o sujeito exprimir com falsa sinceridade os sentimentos mais belos que sabe não possuir. É a moral “sem travas”, por assim dizer, toda arrebentada, terra arrasada. Quem mente sabe que mata algo além da vida: a realidade inteira, quiçá o próprio Deus.
Rafael A. Teles, setembro de 2023.
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