Eu não me lembro do dia em que morri. Mas trago na memória a intrépida máscara da morte, posta de lado, inutilizada, abandonada num vão eterno e absoluto. O mundo era feito de hiatos e o som da música era feito de ausências, pausas fundamentais na partitura do caos. E o tudo era o nada e o nada era tudo. Entre o tudo e o nada, eu era, eu fui, eu seria. Sê-lo-ia sem jamais ter sido, sem deixar sequer um nome.
Lembro-me da piscadela austera da morte, inconfundivelmente obscena e brutal, como cliques de fotografias abissais que engoliam as fossas e os mares, os braços do horizonte esquálido, o zênite azul, as tripas da ciência primordial, vertendo o suco de forma e matéria na doce ilusão de tempos e eras. Eras tu, Judas? Sim, eu era. Tu eras. O tempo era o beijo de Judas; e o perdão, a lei da eternidade. Rápido e devagar são a mesma coisa. A mente está de todo ausente, só resta o significado. Não tive medo, tive pena, de mim e do mundo todo.
Mas a máscara não era tudo, era apenas o despojamento. As portas do teatro dos sonhos, completamente falido, a fecharem-se, sem plateia, no fundo escuro da pupila de um bilhão de olhos ineptos, insensíveis à luz. E a morte era, sobretudo, libertação. E eu não mais seria um boneco de ventríloquo levado a gesticular em prol das burocracias humanas. Ninguém me avisou que seria assim, que viver era ter a alma fora do corpo. E que o corpo sem alma continua de tal modo a movimentar-se por impulso externo, como um boneco de ventríloquo. Salve a burocracia! que põe comida em minha mesa farta, em troca do meu sangue amargo, da minha força vital. Fui chupado por um vampiro, por um carrapato anônimo de meias e pulôver, subcelebridade atmosférica versada em prazeres burgueses. E ele me dizia: “— Reúna os fiéis e proponha um brinde. Um brinde ao grande século da indiferença!”. Ouvidos moucos me salvaram. Ouvidos mortos. A gota de orvalho sagrado arrefece o azedume.
E o morrer era despojar-se, num esgarçamento inevitável do egoísmo e da opinião sobre o tudo e sobre o nada. Quem quiser encontrar a vida, perdê-la-á; quem dela fizer risco e desapego, achá-la-á. Quantas vezes tentei algo e parei? Quantas vezes parei algo e tentei? Serei fiel até o fim, mas fiel a quê? Jamais logrei cumprir sequer o Primeiro Mandamento. Como vocês têm tanta certeza? Eis a pergunta de um milhão de dólares. Se soubesse a resposta (bem-aventurado é aquele que não sabe), eu estaria dormindo agora, pois se estou vivo ou se estou morto, o sono é sempre o estado habitual do bicho humano, até que Deus o acorde, e o acorde para a solidão. Até que eu diga que meu nome é Lázaro, e que eu confesse que minha solidão é estar acordado. Vivo? Talvez. Morto? Não importa. Estar acordado é o que me importa, de todo o meu ser, de todo o coração.
Rafael A. Teles, junho de 2023.
Comments