Recebi hoje um regalo da torpeza, um aceno da aspereza, a piscadela da indiferença. Tal é a banalização que neste mundo se sustenta, onipresente como um totem de adoração sangrenta, que fugir dela equivale precisamente a persegui-la. Merece ser contado o que há pouco testemunhei. E assim o faço, breve, na ingênua esperança de que, também aos que me leem, ao menos uma nesga de autocrítica faça valer a reprimenda.
Eis que ao final de aula, duas irmãs aguardavam à porta da escola a chegada da mãe. Para ser preciso: estavam elas do outro lado da rua, à beira da faixa de pedestres, onde um prédio está a ser erguido como um Coliseu cinzento em meio a uma piscina de gente, terra e cimento, cercada de caminhões, betoneiras e capacetes azuis. Do caos urbano, no epicentro, nas tripas da Babilônia, está a escola das meninas, amalgamada ao trânsito voraz e à construção civil.
A mãe chega, estaciona o carro. As irmãs, que já haviam notado o veículo familiar a se aproximar, equilibram-se na calçada, toda irregular. Materiais escolares em mãos. Casacos. Papéis. Mochilas enormes, desproporcionais em aspecto e peso. Tão logo aberta para recebê-las do veículo a porta traseira, o fenômeno da banalidade se repete e se badala como um sino indigno: levada pelo momento à pressa, a irmãzinha menor tropeça, torce o tornozelo e cai a chorar naquele chão de terra áspera e batida, de pregos e farpas e tijolos arrebentados. Todos os pertences se espalham, agora imundos, pela terra vermelha — com destaque para um aparelho celular. A irmã grande, mais velha e taluda, num heroico ímpeto de desespero, não titubeia. Corre para acudir! E o Iphone é resgatado do chão, imediatamente, e em segurança é levado como um bibelô, como uma taça de cristal, como o cálice de Cristo, para o conchego placentário do veículo.
A pequena acidentada, destroçada, com muito custo e lentamente, engole o choro ainda a chorar, o susto ainda a assustar. Recupera-se da queda, de pé em vão bate a poeira, recolhe os despojos e entra no carro da mãe como um cachorro vira-latas. E da mais velha, a triste imagem não me sai da mente: a ironia estampada em minha frente, com letras garrafais nas costas da camiseta esverdeada do time da escola: SOLIDARIEDADE.
E assim pego-me a pensar, abatido pela invencível condição humana, inebriado pela vergonha alheia, não tão alheia assim. Movido, todavia, por compaixão luminosa, nem tão luminosa assim: num mundo onde pessoas têm preço e objetos têm valor, poderia ser eu a preterir a pessoa pelo objeto, num gesto, como aquele, de indelicadeza monumental? Se já não o fiz, presumo. "Aquele que está de pé, cuidado para que não caia!". E se a reprimenda não se estende primeiramente a mim, por que deveria eu oferecê-la aos outros? Drummond, que disto tratou com maestria poética, diria de mim que também sou escravo da matéria anunciada, que me comprazo, que tiro glória de minha anulação. Que meu nome é coisa. E que eu sou a coisa, coisamente.
Não quero ser coisa. Quero ser gente. Perdoa-me, ó Deus!, que sou banal e indiferente.
Rafael A. Teles, maio de 2023.
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