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Rafael Teles

FUNERAL NA FESTA DA DEMOCRACIA

Inevitavelmente, aí vai um daqueles textos que não são textos, mas repelentes — muito úteis de tempos em tempos. Falemos, brevemente, das espinhosas eleições presidenciais que se dão no ano corrente:


Se é que valerá para alguma coisa, meu cândido voto será dado, desta vez, menos por acreditar no atual arranjo institucional republicano do Estado brasileiro, ou na beleza dos mitos da democracia e do sufrágio universal — mais ou menos como tem sido desde que me entendi como um homem adulto —, do que por uma espécie de revolta e compaixão pelos muitos venezuelanos com quem tenho esbarrado pelas esquinas e sinaleiros em minha cidade: pais e mães de família, carregando crianças de colo, esmolando alguns trocados numa terra que não é a deles, errantes num lugar de língua estranha desde que sua pátria foi “transfigurada” num narcoestado e dominada por uma ideologia vermelha assassina travestida de amor pelos pobres e minorias.


Mente, sem tempo de corar as bochechas, quem quer que diga que hoje, por aqui, no coração do cerrado goiano, não seja comum avistar venezuelanos vagueando em tais condições pelas ruas.


Já meus compatriotas não merecem de minha parte, de modo amplo, geral e irrestrito, este mesmo sentimento que aqui reservo para os venezuelanos. Causa-me espécie saber que há entre nós, em 2022, tanta gente que não somente flerta, mas anseia e atua deliberadamente para que as mesmas ideias assassinas também aqui façam morada. Ideias que não vitimaram somente a Venezuela em tempos recentes, mas que já enterraram aproximadamente 100 milhões de mortos mundo afora ao longo do séc. XX, seja pela bala, seja pela fome fabricada.


Compreendo a ingenuidade e a ignorância, sobretudo de pessoas mais próximas a mim. Compreendo que nem todos consigam conceber a obviedade de que o mal dificilmente se apresenta como mal. O erro está, em parte, justificado pela ignorância. “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem”.


E se não posso anuir com a relativização do roubo, com a legitimação do roubo — que é exatamente o que se pretende numa campanha presidencial de um bandido sociopata sentenciado por uma quase dúzia de magistrados concursados —, quanto mais direi em relação ao totalitarismo tirânico que motivou o roubo em comento para financiar narcoditaduras na América Latina com dinheiro público brasileiro. Se isto não nos causa espécie, já não temos virtude alguma para enfrentar a barbárie que se avizinha.


Se meus compatriotas relativizam o roubo, cedo ou tarde, serei eu mesmo por eles roubado, fatalmente, ainda que sob o pretexto de boas intenções. Entre o socialismo e os dez mandamentos, fico com os últimos — fundações da civilização humana, imperfeita, é certo, mas que há milênios se esforça para preferir a ordem ao caos. O socialismo, ateu e assassino, jamais terá o meu consentimento, ainda que pintado de Mickey Mouse. Mãos sujas de sangue nunca estarão integralmente limpas.


Questões estas, muito anteriores e fundamentais do que simplesmente poder escolher quem será o próximo Presidente da República, crendo piamente que a política salvará o mundo. Não irá. Neste vórtex comportamental que imanentiza e projeta na política todas as preocupações superiores da vida, a política mesma torna-se precisamente o problema; não a solução. Dela, passamos a ter de nos defendermos, sobretudo à medida em que os pontos de referência se perdem, confundem-se e sucumbem às banalidades do nosso tempo. Ao menos para que, no próximo verão, nossas mulheres e filhas não sejam obrigadas a dividir o banheiro com marmanjos, sob o pretexto de luta contra o preconceito.


Parece-me obvio que o atual Presidente da República tenha lá seus lapsos de educação doméstica. Mas também noto, com certo pesar, como há entre nós tanta gente confundindo conservadorismo com falta de educação — ou com algum tipo de puritanismo ou moralismo, ao ponto de julgar-se no direito de exigir que o fruto sagrado do conservadorismo brasileiro, na terra do Chacrinha e de Dercy Gonçalves, seja um Sir Roger Scruton tupinambá de gravatas-borboleta, um pulôver cósmico de luvas brancas; e não um conservador tão perfeito que encarne até os defeitos do conservadorismo brasileiro. E é assim que, da direita à esquerda, não faltam objeções daqueles que, com o sobrolho levantado, dedo em riste e indefectível mãozinha na cintura, logo digam: “— Ah, mas ele não é um dos nossos!”.


Mas vejam: eu tomaria muito cuidado quando esta falta de educação é exposta, em uníssono, por todo um aparelho, por todo um falatório de comunicações que não se incomoda tanto assim com a propagação explícita do socialismo ateu que relativiza o crime, o roubo e o assassinato — já levado a cabo no âmbito da política internacional, já velho e experimentado em desgraças por onde passou. Tais ideias corrompidas não atravessam a barreira dos dentes do Presidente da República, mas seduzem o imaginário de tanta gente que o odeia. “— Mas qual é o seu problema com o ateísmo?”, talvez interpelem-me os hidrófobos. Explico: o meu problema é estar com Dostoiévski: se Deus não existe, tudo é permitido.


E noto nisto um sempre constante flerte com a morte, mas uma morte polida, de máscara e álcool-gel, tão “respeitosa” pela vida quanto a raposa que se elege para presidir o galinheiro: a presença de um vampiro que baba por sangue e poder, gabando-se em “obséquios” muitos antes de degolar a vítima.


E por manter as mãos sempre limpas antes de disparar o fuzil. Ou por vangloriar-se de nunca mijar na tampa do vaso enquanto milhões seguem sem saneamento básico pleno. Por assumir sem cerimônias (e sem palavrões) que o roubo não é tão ruim assim, desde que se distribuam migalhas às vítimas que serão eternamente gratas pelo favor das migalhas repartidas! Por não atentar jamais contra a etiqueta ao chupar o fígado e as tripas do cidadão comum, desgraçando-lhe a alma sem nunca ferir-lhe os sentimentos com palavras malcriadas que atentam contra a liturgia dos cargos republicanos. Hannibal Lecter, politicamente correto, fino e inumano. Um espectro maligno no imaginário corrompido.


Se o Brasil fosse mesmo um país sério, não seria sequer cogitada a hipótese de um bandido condenado em todas as instâncias do Poder Judiciário concorrer livremente com a maior cara-de-pau ao cargo de chefe do Poder Executivo. Um escárnio, laureado por todo este mesmo aparato da comunicação de massas que lobotomiza e faz gente desavisada dobrar os joelhos diante de Hannibal Lecter, o espectro, o consenso puritaníssimo, a máquina de moer gente que quer, como num estupro, mudar o mundo contra a vontade do mundo, pelo “bem” do próprio mundo. Há láureas que mais denunciam contra do que em favor do laureado.


Rafael A. Teles, setembro de 2022.

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