Fulminado pela pupila de mil olhos, cai duro como pau o bode sacrificial. Desenrolam-se como num show de horrores os acontecimentos na digital nova era, pseudo-cotidiana, onde vícios e virtudes exibem-se em procissão, mas sem os muxoxos de confessionário. A internet é isto, afinal: o tribunal universal high-tech em que se malha o Judas com todos os pecadores.
Ah, o bode expiatório! Tão antigo ritual! Nós todos compreendemos, em alguma medida, o fenômeno. A expiação da culpa coletiva, do rito fúnebre ao entretenimento mesquinho, por Caim sacramentado, desde Barrabás demonstrado. A turba clama por sangue, ao mesmo tempo despersonalizada e ferozmente pessoal.
Tolerância é declaração de fé. Suscetibilidades sagradas. Cartilha que se reza nos altares democráticos, encenada no teatro dos sonhos do homem evoluído, politicamente mimado, adestrado como cão, com placebos anestesiado, praticamente inofensivo. Quem pisa o palco e tropeça no enredo, ao cadafalso das opiniões é prontamente conduzido. Neste séc. XXI, Deus poderia muito bem tirar longas férias, pois por aqui, do alto dos milênios, já cuidamos de tudo. Nunca antes na história desse país o intolerante clamou tanto por… tolerância.
Sub-repticiamente.
Sub-reptícia mente.
Mente.
É com prazer dopaminérgico, voyeurístico, pueril, que decretamos em venenosas línguas de pura fofoca a queda de nossas vítimas sacrificiais, cordeiros na arena pública. Em ritmo de telenovela, acompanha-se em tempo real o desenlace, com entusiasmo escaldante, com gosto de sangue na boca. Dedos julgadores digitam, frenéticos, o veredicto. Expiam-se assim não somente as nossas culpas, mas também o nosso tédio. Aplaca-se assim não somente a ira de Deus, mas em nossas vidas a mais completa falta de sentido, com o deleite de não estar, naquele instante, no lugar do sacrificado, e de fingir esquecer que o mundo gira, que a roda da fortuna é implacável.
E assim segue a telenovela perversa dos santos e pecadores modernos, a que assistimos, com um olho crítico e o outro complacente, na esperança de que, na próxima cena, não nos vejamos a nós mesmos – por um erro monitorado, um deslize gravado ou um comentário mal colocado – no papel do bode expiatório.
Rafael A. Teles, outubro de 2024.
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