Sou homem, congrego em mim a humanidade inteira. Se sou homem, também sou folha, papel, papiro, diário de rabiscos apressados: o garrancho universal do cosmos num bloquinho de notas. Sendo testemunha ocular de uma história, a minha, represento um legado, o do mundo todo. Sou uno, a unidade no todo, o todo no particular. Se sou folha e papel, sou também o repositório, o depositário fiel de uma auto-biografia cujo texto é simultaneamente escrito em minha alma e lido com retórica afetada, dia após dia, a um público sempre sedento por sangue. Desconfio de mim mesmo, mas narro tudo ao vivo, sem cortes, sem ensaios, sem titubeios, com tradução simultânea para a língua dupla de todos aqueles que um dia a mim quiseram antagonizar-se, alienígenas em meu mundo interior. Quem vive faz ao vivo, com papel de destaque, meio protagonista meio coadjuvante na mais bela tragédia universal: o ser humano.
Fiz-me papel gasto, trespassado por rabiscos de caligrafia ruim, desconexos, descontínuos. Folha solta arrastada pelo vento que sopra pela janela. Celulose frágil e amarelada, fibra mole e finíssima esfarelando-se numa confraria de ácaros. Papiro em decomposição no tempo e espaço, para além do espaço-tempo. Ventou, soprou, lufadas secas e arbitrárias, e fui parar num vão escuro. E de algum modo eu mesmo o quis, se não ouso exasperar a minha natureza. Esquivo-me das circunstâncias, arrisco não arriscar e deixo transcorrer in albis o prazo peremptório da minha vida.
Neste estado de calamidade, poderá Deus poupar-me a papelada, o papelão? Pois livrai-me do peso, do estorvo de ter de suportar a pressão aguda da pena que anseia arranhar em minha carne as lembranças mais excelsas! Virai a folha, buscai outra em melhor estado, mais ampla e digna de nota! Mal acostumado passo despercebido, sem registros no Livro da Vida, tendo nada a declarar, como a lápide que indica a presença tímida de um defunto anônimo esquecido em meio aos célebres e notáveis do cemitério São João Batista, não menos esquecidos. E malogro em minha missão antológica. Não sei quem sou, jamais saberei, jamais saberemos, jamais alguém saberá. Desonro os heróis dos contos imemoriais e invejo o heroísmo cotidiano, anônimo e sublime. Lamento as cicatrizes que não carreguei.
Eis o sentimento que me devora. Não sei nomeá-lo, monstro familiar que com violência me dilacera até as tripas. Demônio que me espeta em brasas vivas sempre que, inadvertido, blasfemo contra Deus e o mundo. E com que desgraçada frequência isto me acontece! Poupado, protegido num campo de força impenetrável — berço de satisfação e sossego imerecido —, indiferente a todos os males, acompanho de camarote a leitura sonora e solene de milhões de auto-biografias alheias que seguem sendo escritas no papel seda das almas imortais, com lágrimas de sangue sagrado, num rubro fluorescente inescapável aos olhos, impossível não ser notado, farejado, consumido, lido e relido e apreendido eternamente em letras garrafais de luta renhida. E então lamento, envergonhado: quem me dera poder reescrever o que não foi escrito, dizer novamente o que jamais foi dito, morrer pelo que não vivi. Viver, morrer, ressuscitar. Louvado seja o sofrimento que purga, filtra e fortalece. Bem-aventurado é aquele que sofreu e venceu, de cabeça erguida, a condição humana. Sua história merece ser contada pelos séculos dos séculos.
Os heróis das epopeias, histórias e contos imemoriais são símbolos ilustres. Condensam em si mesmos o que de mais nobre pode ser concebido, imaginativamente, acerca da natureza humana. Modo outro, os heróis da vida cotidiana, a meu ver, conseguem ir além: personificam tal nobreza trazida do grande mar das possibilidades e dão vida a uma grandeza anônima mas onipresente. Anônima porque a encarnação de tal nobreza heroica — gente de carne e osso — jamais figurará nas gloriosas epopeias, e tenderá sempre a ser até mesmo esquecida, diluída no tropel de paixões que arrasta o mundo. Suas histórias particulares dificilmente serão contadas, senão para uma plateia celestial, no alto da eternidade. Nada obstante, tal grandeza é também onipresente, porque todos os dias, em todos os lugares, faz levantar da cama milhões e milhões de pessoas completamente obstinadas, num único senso de propósito: cumprir o seu dever. Sempre haverá, em toda parte, aqueles que carregarrão este mundo nas costas, se preciso for. Chamo isto de heroísmo.
Há quem diga que o heroísmo tornou-se démodé, old fashioned, pauta atrasada, e que corrompeu-se. Há quem diga que basta ligar a televisão e navegar nos seriados de última temporada para logo termos de beber do caldo cultural insosso das mais absurdas subversões da velha figura do herói, a ponto de não mais nos identificarmos com a virtude, mas com a corrupção dela. Mas a verdade, creio eu, é que nada disto se sustenta. Ao menos, não como regra geral. A realidade é um tanto diferente e, como um bicho arisco, sempre que quiser, tornará a furar nossas bolhas conjecturais sem dar a mínima importância para suscetibilidades ideológicas — como um gatinho que brinca com novelos de lã. Heróis existem e superabundam o mundo desde tempos imemoriais, dentro e fora das epopeias. As virtudes que vêm do alto não podem ser destruídas. Nem por bombas nem pela insistência da propaganda tecnocrática que busca esvaziar o homem para escravizá-lo. Nem por decreto nem pelo retrocesso imposto pelo progresso. É força que deste mundo não é, e que aqui não busca glória.
Rafael A. Teles, março de 2022.
Comments