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Rafael Teles

ENTRE O ABISMO COLETIVO E O GULAG INTERIOR – DE CORÇÃO A SOLJENÍTSIN

Malgrado a mais obstinada e elementar estupidez que insiste em manter-me em eterno cativeiro, se hoje me fosse dado elencar, a título de indicação a quem possa interessar, dois livros que fizeram de mim alguém um pouco menos bicho e um tanto mais humano, O Arquipélago Gulag de Aleksandr Soljenitsin e Lições de Abismo de Gustavo Corção certamente comporiam, com a inegável solenidade de um diálogo inevitável, tal singelo rol. Parece pouco, mas é muito. Aqui, o qualitativo anula o quantitativo. Acredito realmente que, através da leitura, é possível desasnar o homem, restaurar-lhe a condição humana. Aprendi, como um burro de carga já experiente, que nossa humanidade particular não nos é dada de graça, de mãos beijadas, mas adquirida por esforço não raro incalculável, hercúleo – esforço civilizatório. E neste sentido, pego-me mesmo por aqui, tendencioso a crer na força conjunta, na verve metafísica, de apenas duas obras literárias que, pelo peso e qualidade do material humano nelas depositado, oferecem um arcabouço de lições e experiências para uma vida toda. Se bem lidos, civilizam o leitor.


Ao individuo em particular cabe conquistar a própria humanidade, num empreendimento que não pode ser terceirizado. E como se não bastasse, tal esforço não se limita a simplesmente entulhar matéria orgânica dentro da própria cabeça – como quem constrói um prédio ou uma fortaleza entregando-os à própria sorte. Não basta o acúmulo de informações, o decoreba de preceitos e trejeitos, a etiqueta esvaziada de significado. Faz-se mister dar sentido moral a tudo isso, que é justamente o que nos difere de um papagaio que repete frases decoradas sem conhecer-lhes o sentido. É preciso manter de pé o que foi erigido, defender do barbarismo existencial as glebas da consciência que foram desbravadas e conquistadas a preço de sangue. Nelson Rodrigues já disse, certa vez, que o homem é o único animal que consegue a façanha de desumanizar-se. Um tigre jamais deixa de ser tigre, mas o homem...


Tomar de empréstimo as experiências alheias e vivenciá-las em imaginação, como se fossem nossas, observar a problemática do mal e do desengano a partir do ponto de vista privilegiado de quem conseguiu superar, vencer e substituir o mal e o desengano pelo bem e pela esperança, eis aí um ato humanitário, civilizacional. Eis o que a boa literatura tem a oferecer. Eis o que Corção e Soljenítsin entregam ao leitor que sinceramente os procura.


Preciso falar brevemente sobre.


O Arquipélago Gulag foi escrito num contexto de total desumanização de seu autor. Trata-se o livro de uma “investigação literária” levada a cabo por Aleksandr Soljenítsin durante os anos em que foi feito cativo no gulag soviético sob a ditadura de Stalin. A obra traz inúmeras descrições de fatos ocorridos. O autor não inventa, não aumenta; apenas narra o que vê e medita sobre o que vive. É difícil acreditar em certas histórias e lendas que povoam o imaginário, a memória coletiva de um povo. Apesar de presentes em forma de símbolos, tais histórias sempre se mantêm distantes. E nós, alheios a elas, indiferentes. Por outro lado, a narração de Soljenítsin acerca dos horrores do gulag, dada em primeira pessoa, é impossível de ser ignorada. Não há como tapar os ouvidos para o testemunho de quem presenciou outros seres humanos sendo obrigados a cavarem as próprias covas. Não há como fechar os olhos diante da banalização do mal quando se presencia, num único dia, a morte de inúmeras pessoas que não suportaram a sobrecarga de trabalhos forçados e a desnutrição, sendo enterradas em valas comuns, aos montes, jogadas como lixo entulhado, sob a justificativa de que a madeira disponível não poderia ser desperdiçada com a produção de caixões. Simplesmente não dá para deixar de comover-se pelo sofrido sarcasmo deste autor/narrador que, comparando os regimes nazista e stalinista, nos conta que por meras razões econômicas as câmaras de gás eram um luxo impraticável no gulag soviético. Sortudos eram os nazistas por poderem gozar de tão macabra tecnologia em matéria de aniquilação de indivíduos indesejados.


Mas para além do passeio pelo mal em toda a sua expressão real, o Arquipélago Gulag faz o caminho de Dante na Comédia, e leva-nos do inferno ao céu, provando que é possível não deixar-se contaminar pelo mal quando tudo em volta se corrompe. Um dos trechos memoráveis, no meu sentir, é aquele em que Soljenítsin reflete sobre os motivos que levam o homem a tornar-se o carrasco de seus semelhantes. E conclui, com uma espécie de compaixão pelos seus algozes, que ele mesmo, em outras circunstâncias, poderia estar no lugar daqueles homens que resolveram colocar-se a serviço de ideias despóticas, impondo, pela força do fuzil, a desumanização alheia. E eis aqui uma das mais belas imagens já registradas em palavras: há no coração de todos os homens, uma linha móvel, que separa as proporções sempre e inevitavelmente presentes de bem e de mal. Em outras palavras: a todos é dado um certo quinhão do amargo e do doce. E o homem mais santo também guarda no coração uma pitada de maldade, enquanto o mais vil, por mais vil que seja, também carrega dentro de sim um naco de bondade. Estamos aqui, portanto, diante de uma conclusão pessoal de Soljenítsin após ser exposto à experiência do absurdo, ao extremo, transcendendo, nada obstante, o mal que se abatera sobre ele, sobre seu povo e sua pátria.


Gustavo Corção, por sua vez, não faz diferente, não faz por menos, e à sua maneira, também nos mostra que é possível transcender nossas misérias, torná-las em bem, fazer delas verter mel no nascedouro mesmo do fel. Lições de Abismo – único romance escrito por Corção – narra a história de um homem desenganado em sua saúde, com um casamento arruinado e uma projeto de família que fracassou completamente, esfarelando-se em lembranças que nem chegam a ser saudade, mas remorso. Estamos agora diante de um personagem que sabe que irá morrer em breve, e que pode, a partir da perspectiva da morte, “a única certeza que anda ao contrário das outras”, tentar encontrar algum sentido em sua desordem interior. Corção leva-nos, a seu modo, também pelo caminho de Dante na Comédia, até que seu personagem encontre o “repouso verdadeiro”, mas não antes de ensinar-nos a olhar para fora, para o outro, para o derredor, para outras tantas realidades ignoradas além da nossa própria – o que nos ensina que não somos o centro do universo. Somos devedores da existência; jamais credores.


Assim como Soljenítsin, nosso personagem de Lições de Abismo reflete profundamente a existência. A seu modo, discorre sobre o coletivismo como a “teoria do ajuntamento sem unidade” dos homens que perderam o segredo das próprias almas, e que ajuntam-se no tépido aconchego do curral após cansarem-se de um longo processo anterior: um processo de atomização que, em sentido oposto, revelou-lhes precisamente o segredo de suas almas, com o qual não poderiam lidar. Desta forma, vai-se de um extremo a outro, como num pêndulo. “A história do homem é uma dança em compasso binário”. “Qual dos dois será pior? O egoísmo que se isola ou o egoísmo que se congrega? É difícil decidir. Será pior aquele de que o mundo se cansou; será melhor aquele de cujos incômodos o mundo se esqueceu.”


Soljenítsin passa pelo mesmo processo, como quem aprende que o sofrimento não anula a vida, e o relata à sua maneira, com sua linguagem, com suas imagens, e sobretudo com seu testemunho. O pêndulo dos erros, de Corção, é a linha móvel que perpassa o coração dos homens, conforme desenhada pela pena proibida do escritor russo. Ambos nos levam à experiência de conversão, de epifania com o Divino, de libertação do nosso olhar para que possamos enxergar o humano que há no outro, fora de nós, para além de nós.


Legam-nos ambos a certeza de que a vida transcende o mal, e que isto basta para que ela faça sentido.


Viva Corção!

Viva Soljenítsin!


Rafael A. Teles, 22 de dezembro de 2022.

Morro do Livramento.

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