Eu já ia me esquecendo de confessar algo deplorável da minha parte. Convém falar enquanto há tempo, afinal, de algum modo, a confissão liberta. Carrego em minha persona muitíssimos defeitos. Muitíssimos e mais este: sinto mesmo um certo deleite, meio boçal meio maquiavélico, nada republicano (seja lá que idiotice queira dizer o clichê), ao apelidar jocosamente pessoas desconhecidas com as quais deparo-me por aí. Não todas, obviamente; algumas poucas apenas — as mais peculiares, extravagantes, que destacam-se em cores vivas da multidão de todos os dias, nebulosa e cinzenta.
Engana-se o leitor amigo, caso suponha que o que faço, o faço pelo simples prazer da depreciação vulgar e barata daqueles que me cercam. De modo algum. Há um tom de sadismo em tal hábito deselegante, é verdade. Mas no final das contas, o que almejo em meus devaneios, sempre, é rir-me de nossas misérias compartilhadas para, quem sabe um dia, transcendê-las — desenhá-las em caricaturas verbais. Considero-me artista, em alguma medida.
Além do que foi dito em linhas alhures, não passo: sou um gaiato inofensivo — minhas vítimas nem ficam sabendo do que se passa em minha mente de imaginário delituoso. Não há, neste mundo, minúscula criatura para qual a existência não seja um sarcasmo, dizia G. K. Chesterton. E incluo-me na constatação! Que não se espere de mim virtudes promocionais, nem a bondade de quem se badala como um sino indigno. Ademais, segundo consta, o humor ainda não figura como crime hediondo positivado nos anais das democracias ocidentais. Mais um motivo para, ligeiro, confessar-me enquanto há tempo. Dizem as más línguas (não a minha, neste caso) que até o verdor da grama já anda a meter-se em controvérsias judiciais.
Por sinal, certa feita apelidaram-me “Altiva” durante os anos do ensino fundamental. Altiva era a vilã maldita de uma telenovela nauseabunda à época e, como eu estava naqueles dias, muito mancebo, deixando o cabelo crescer, pegaram-me para Cristo. Dei de ombros. Ninguém morreu. Saímos ilesos e a vida seguiu o seu curso natural numa época em que bullying era resolvido no tete a tete.
Mas voltemos ao que eu lhes dizia. Fizemos uma viagem ao Chile, anos atrás, eu e minha esposa, acompanhados da Nina, nossa pequena menina. Num daqueles maravilhosos passeios pela fria Santiago suburbana fomos parar numa excursão rumo aos parques de neve na Cordilheira dos Andes. Era muito cedo e na noite anterior eu havia bebido pisco o suficiente para garantir uma bela manhã de náuseas, intensificadas pelo frio e pelas poucas horas de sono. Pegamos o ônibus e, no caminho, notei logo um sujeito sentado no banco da frente, à minha esquerda. Melhor dizendo: eu ouvi o sujeito, com os meus dois ouvidos que um dia a terra há de comer. Juro: era alguém que fazia muito mais barulho que todos os demais naquele ônibus — sim, as propriedades do som causam em mim efeitos quase cinematográficos: alto, magricela, com nariz adunco e olheiras fundas, o sujeito estava ali a mastigar amendoins como uma máquina de triturar vidro para reciclagem. A bocarra, meus amigos, enorme, mais aberta que fechada, debulhava enlouquecida. E lançava, de orelha a orelha, os despojos do amendoim moído que chovia por todos os lados enquanto a mandíbula monstruosa mastigava numa velocidade alucinante, febril. Era como se o sujeito comesse pedras. Um terremoto, uma avalanche, uma catástrofe ambiental! Fiquei horrorizado.
Minha reação imediata, de sujeito sarcástico que sou — momentaneamente tornado mais razinza que o habitual pela força do pisco ainda a evaporar-se no suor frio de minhas náuseas —, foi forte demais para que eu pudesse conter, pelo que num ímpeto irresistível, sussurro então ao pé do ouvido de minha esposa: — “Mas que cara escroto!”
Ela, mulher sensata que é, abafou o riso e mais que depressa deu-me um beliscão em reprimenda, sem saber, contudo, que acabávamos de batizar para todo o sempre aquele sujeito peculiar até então para nós sem nome. Escroto nos acompanhou por pelo menos um par de dias durante aqueles passeios pela fria Santiago. Escroto e sua máquina de esquartejar oleaginosas, hoje, deixam-nos belas lembranças.
Assim foi também com o Futum, com a sra. Chinese Crazy e tantos outros — apenas para mencionar alguns de maior destaque e de maior saudade que vez ou outra nos visita. Mas sobre estes, bem... é melhor silenciar. Há confissões que não devem ser públicas. De todo modo, já não tenho agora tempo para maiores detalhes. Mas que fique aqui, desde já, o reconhecimento humilde da minha culpabilidade habitual. É tarde e preciso ir. Despeço-me antes que durma sem escovar os dentes (o que me ocorre com notável frequência). Não só isto: antes que botem-me apelidos sub-ginasianos como Bafo de Boca ou Traqueia Maligna. Nunca se sabe! Como eu dizia, de virtudes promocionais não tenho nada, mas também não nasci ontem. Enfim, não quero arriscar a minha reputação.
Até!
Rafael A. Teles, fevereiro de 2022.
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