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Rafael Teles

DE TE FABULA NARRATUR

A Morte de Ivan Ilitch, aquela curta novela de Liev Tolstói publicada em 1886, deveria ser lida, em verdade, como uma espécie de ultimato. É como se o velho escritor russo, com o dedo indicador em riste e tom solene, de antemão alertasse com voz de trovão: — “Não se engane. É de ti que falo nestas páginas!”.


A morte é certamente um tabu universal. É assunto evitado a todo custo. Realidade varrida para debaixo do tapete num porão escuro de nossas consciências entorpecidas. Temos aqui belo um assunto que, via de regra, só é encarado de frente (quando muito) com um certo ceticismo, como se a nós mesmos jamais dissesse respeito, ou mesmo como quem espia de longe um bicho peçonhento num zoológico, com uma boa margem de segurança, confortavelmente protegido pelas grades da jaula que mantém distante a víbora. Tolstói obviamente conhecia muito bem esse subterfúgio e por isso mesmo resolveu dissecá-lo sem pudores, sem contudo roubar a grandeza, a dignidade do fenômeno morte — a única certeza que temos nesta vida.


Portanto, eis aí uma verdade inconveniente: para muita gente, não é motivo de qualquer preocupação o fato de ser plenamente possível (e mais comum do que se imagina) viver uma vida madura e bem-sucedida, todavia, absolutamente falsa e oca, sem sentido e ancorada em meras aparências. E quão devastador deve ser, como o foi para o nobre personagem de Tolstói, encarar-se num solitário leito de morte e descobrir que a vida de nada valeu? Uma mentira existencial vivida por décadas, perfeitamente escondida por detrás de uma auto-imagem farsesca.


Cá com meus botões, penso que, de modo análogo ao "medalhão" machadiano, o Ivan Ilitch de Tolstói seria em nosso meio um sujeito muito bem posicionado na hierarquia social. Muito bem relacionado, digamos. Não por circunstâncias fortuitas e casuais, tampouco por mérito propriamente dito, mas pela estrita observância de um método. Cercaria-se, sempre e rigorosamente, de pessoas igualmente bem relacionadas, fortemente preocupadas com a decência, com a opinião pública, títulos e posições, patentes e salamaleques. Festas, jantares, pompas e comemorações calculadas menos para a comunhão e partilha real das afinidades, do que para produzir um efeito público de manutenção do status. O leitor atento certamente anuirá: há de fato mais gente assim do que se imagina. E quão potencializado se mostra tal fenômeno em tempos de redes sociais, de exposição virtual induzida e fomentada por uma necessidade artificial que nos é imposta, numa espécie de culto de Narciso, a que tantos aderem voluntariamente sem ruminar!


É o típico sujeito de outdoor, bem-sucedido perante olhos alheios, que fez da burocracia profissional a razão mesma de sua existência e a espinha dorsal de sua personalidade. Retire desse sujeito o cargo, a rotina, a network, os jogos de influência, o poder de mando por tais meios conquistado, a auto-imagem de segurança, sucesso e autoridade pública por ele idealizada, e logo veremos uma figura chinfrim, miúda. Moralmente desnuda. Sem rumo. Estranha aos próprios familiares, desconhecida dos próprios filhos. Sem opinião, sem substância. Não são dele as palavras que atravessam-lhe a barreira dos dentes, pois apenas repete o que aprendeu a dizer. As ideias que permeiam-lhe a alma flutuam e estouram frágeis como bolhas de sabão. Os fundamentos de sua personalidade sustentam um edifício firme como gelatina. Seus impulsos intelectuais são macaqueação pura, da cabeça aos pés. Sua moral ilibada é a simulação de todas as virtudes — facilmente negociáveis a depender das circunstâncias. O sujeito é, afinal, tudo o que não deveria ter sido. Nosso nobre personagem terceirizou-se, e por esta razão mesma, de nobre nada tinha.


Ivan Ilitch viveu tantos anos debaixo daquela casca de homem correto, escondido atrás de um ofício burocrático que lhe proporcionava prazeres e vantagens, que acabou por esquecer-se de si mesmo no meio do caminho — Nel mezzo del cammin di nostra vita. Esqueceu-se de quem realmente era, de quem um dia havia sido.


É quando, por um golpe do destino, acometido de uma doença terminal, tudo desmorona, restando de pé apenas o remorso por ter jogado a sua personalidade — a essência de sua própria vida — no lixo moral de uma classe a ele totalmente indiferente e constituída por estranhos ilustres. Nosso pobre Ivan é agora atormentado pela certeza de que também ele jamais havia sido verdadeiro com nenhum daqueles estranhos, ainda que tão próximos. Jamais havia se importado verdadeiramente com ninguém. As dores físicas da moléstia atormentavam-lhe menos do que o arrependimento moral — a sensação do vazio de uma vida sem significado, que passou e não volta mais. De nada adiantou-lhe ter levado aquela vida fácil, leve, prazerosa, cercada de bons relacionamentos, esbanjada no bom e no melhor, mas falsa e dissimulada, para qual a opinião pública era infinitamente mais valiosa do que as poucas certezas que todos trazemos guardadas a sete chaves na alma.


Enfim, Ivan Ilitch morreu. E que morra também em nós! Não há neste mundo força mais poderosa do que a personalidade humana. Que o leitor amigo não troque esse incomensurável presente divino pelo prato de lentilhas podres de quem vende a primogenitura. Nem pelas trinta moedas malditas de quem resolveu trair a Verdade com um beijo seco. Que jamais se deixe apaixonar pela bajulação interesseira e comezinha de vampiros e figurões que fugirão em revoada quando nada mais puderem sugar, quando o status que passa e escorre pelos dedos tornar-se obsoleto.


A visão da morte e da eternidade que ela desdobra diante de todos os homens é o único critério confiável para que se possa aferir o que de fato tem algum valor nesta porca vida — as ideias dos náufragos, como sabiamente insistia Ortega Y Gasset. A vida que vale a pena ser vivida e pela qual vale a pena morrer. O resto é nada, senão poeira.


Rafael A. Teles, abril de 2020.

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