Encontro-me agora diante de ingrato empreendimento. A dura tarefa que é, sob o escrutínio atento de um professor vocacionado e auspícios de meus pares colegas, correlacionar brevemente a noção do sentimento de angústia conforme nos é apresentada por Graciliano Ramos e Fiódor Dostoiévski, nas obras Angústia e Crime e Castigo, respectivamente.
Quem sabe minha humilde tarefa resuma-se aqui, menos em cravar respostas satisfatórias acerca de um tema sobremodo complexo, do que formular perguntas que nos auxiliem (a mim mesmo, sobretudo) a melhor vislumbrar a amplitude do fenômeno da angústia, o tamanho de sua problemática. Eis o que me cabe. Menos é mais, sobretudo em matéria de honestidade intelectual. Ou seja: mais vale saber administrar a dúvida honesta e consciente do que a exibição tola e vazia de falsas certezas, fundadas na palpitaria universal.
Pois bem. Eu ia falando do velho Graça e de Dostoiévski. Com efeito, ao cotejar os romances que são aqui o objeto de nosso estudo, a questão do homicídio salta-nos aos olhos imediatamente. Mas não só a ideia do homicídio tomado em si mesmo, como fato isolado, mas também as razões pelas quais os homicidas sentiram na pele, literalmente, os efeitos de um sentimento que os consumia ao ponto de fazer desaguar de suas almas doentes, torrentes de ódio insuportável sobre indivíduos tidos por intelectualmente inferiores, antagonizando-os ferozmente numa resolução de vida ou morte, no ato de matar.
Em Graciliano, Angústia é o nome dado ao romance, por ser este sentimento (ou estado de alma, caso queiram) o eixo central da narrativa, esculpida em monólogo interior. O narrador-personagem, Luís da Silva, rememora os eventos que o levaram a cometer um assassinato, a partir de suas percepções e pontos de vista, envenenados pelo sentimento angustioso. Em sua chave etimológica, a palavra angústia remete a estreiteza, limite, restrição, ansiedade ou aflição intensa. Em sua origem latina, angustiae também flerta com a ideia de desfiladeiro, estreito, ou seja, o sentido de brevidade, de dificuldades, de situação difícil. Encontramos, ainda, relações da palavra com carestia e escassez. E tudo isto pode ser observado em Luís da Silva. A aflição que tem origem remota na alma, se materializa no corpo e, no ponto crítico, quando sopita, externaliza-se num ato, numa ação, num homicídio.
No romance de nosso grande alagoano, no meu sentir, a confissão da reação física a este sentimento de certo modo indiscernido nos é dada logo no primeiro parágrafo do texto. Luís da Silva inicia a sua confissão dizendo não estar ainda completamente restabelecido de uma espécie de doença. Sombras de visões passadas que lhe produziam calafrios. E não só isto. Pela pena de Graciliano, Luís da Silva logo diz: “Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram. As mãos já não são minhas: são mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações das palmas cicatrizaram”. A obsessão de Luís da Silva explode, portanto, num misto de raiva e tristeza que arrebenta no corpo em manifestações multiformes. A confissão acerca da origem remota daquela aflição é, por sua vez, mais sutil, mas está igualmente lá, passando pelo trecho da narrativa em que o personagem descreve a vida insignificante que leva, a rotina ingrata que sempre obedeceu, e que adquire insuportável contraste a partir do momento em que conhece Julião Tavares, seu antagonista – o burguês de vida fácil que representa tudo o que Luís da Silva mais desprezava, mas ao mesmo tempo invejava.
É que Luís da Silva sente-se intelectualmente superior ao meio em que está fatalmente inserido, contudo, fortemente injustiçado, preso a uma vida medíocre. “Considerava-me um valor, valor miúdo, uma espécie de níquel social, mas enfim valor”. É este sentimento de inadequação que, paulatinamente, o envenena, sobretudo a partir do momento em que se antagoniza a Julião Tavares, personagem que é como a última gota de fel derramada na boca de Luís da Silva, e que viria a tornar-se, assim, o fetiche de um ato libertador, morbidamente libertador, criminosamente libertador. E de quê, precisamente, Luís da Silva necessitava desesperadamente libertar-se? De Julião Tavares? Não. De sua angústia.
Da narração de toda a cena do assassinato, Graciliano extrai de seu personagem, de modo brilhante, o misto de dores e alívios que rasgam-lhe a alma durante o ato de matar. Desde o sentimento de inferioridade, do “homenzinho da repartição” que “só se podia mexer pela vontade dos outros”, até a certeza da obsessão que, a partir daquele momento, iria desaparecer, deixando-lhe um gosto de deslumbramento e uma enorme alegria. Alívio, enfim.
Em Dostoiévski, por outro lado, dado o caráter psicológico da trama, pela voz de um narrador onisciente, há muito mais elementos de tal sorte, espalhados por todo o texto, sobretudo naquilo que, a meu ver, caracteriza-se como efetiva descrição do iter crimnis, conforme nos é ensinado nas cátedras do Direito, ou seja, todo o caminho preparatório, quer no campo da cogitação mental, quer no campo prático das ações, para a consumação do ato criminoso. E mais: antes e depois dos assassinatos cometidos por Raskolnikov, o jovem personagem de Dostoiévski delira, como que num torpor acordado, também em meio a calafrios e sonhos febris, pelo que também sofre na pele o desconforto de origem espiritual, que teve origem na alma. Em certo trecho, é dito que Raskolnikov tinha semblante extremamente pálido, e que expressava um sofrimento excepcional, como se acabasse de ter sido submetido a uma dolorosa cirurgia ou tortura. Dores de cabeça, febre e calafrios também aparecem na narrativa do grande romancista russo para descrever uma espécie de opressão que domina o personagem, ao ponto de Raskolnikov sentir que não tinha mais liberdade espiritual nem força de vontade. Matar uma velha usurária da vizinhança era uma decisão já tomada em definitivo, como a única forma concebida pelo personagem como lenitivo para a obsessão repulsiva que o dominava de corpo e alma.
Não creio que a velha – a vítima –, seria de fato, por si mesma, o grande objeto de ódio e desprezo do personagem, mas o símbolo, a personificação da injustiça que dava causa e alimentava a angústia de Raskolnikov. Assim como Julião Tavares em Graciliano, também em Dostoiévski a velha foi a válvula de escape, o caminho mais curto. Matá-la foi a resposta dada a um estado de alma insuportável. Resposta que poderia ter sido outra, mas não foi. Assim como Luís da Silva em Angústia, o desprezo social de Raskolnikov era, de início, absolutamente difuso, geral, despersonificado. Acerca de seu personagem, assim diz o escritor russo: “Raskolnikov era muito pobre e, de certo modo, assoberbado e intratável, como se ocultasse alguma coisa dentro de si. Havia quem achasse que olhava de cima para todos os companheiros, como se os excedesse, feito crianças, em desenvolvimento, em conhecimentos e convicções, e tomasse os interesses. E convicções deles por algo inferior”.
Temos aqui, portanto, exemplos célebres de angústia motivada por razões intelectuais, a partir da perspectiva de dois personagens profundamente incomodados pela mediocridade de um meio que, injustamente, de algum modo lhes oprimia: Luís da Silva era bom demais para ser humilhado por Julião Tavares – o gordo ruivo, o playboy burguês que lhe roubara a auto-estima e a mulher. Raskolnikov, por sua vez, garoto portador de um futuro brilhante, faria muito maior bem à humanidade caso tivesse à sua disposição o dinheiro da velha usurária – um piolho que apenas acumulava em vão. O que ela faria com aquele dinheiro todo? Absolutamente nada de útil. Dinheiro que poderia tornar aquele jovem sonhador num novo Napoleão, financiando-lhe os estudos e uma carreira brilhante. “Cem, mil bons negócios e iniciativas é que se pode ajeitar e melhorar com o dinheiro da velha”. Raskolnikov, em dado momento, chega a afirmar que a velha usurária, alvo de sua obsessão, não merece viver.
Devidamente comparados ambos os textos – seminais, diga-se de passagem –, sinto-me desde logo inclinado a endossar a ideia de que a angústia, enquanto doença do espírito, em casos extremos, para muito além da esfera do indivíduo angustiado, é também uma preocupação social. É ferida indiscernida, com potencial para tornar-se verdadeira patologia que flerta com o crime, em casos extremos, evidentemente, quer na forma do assassinato, quer na forma do suicídio, tendo doa a quem doer a morte como válvula de escape, como o alívio numa panela de pressão prestes a explodir.
Não ousando catapultar para a sociedade do espetáculo e da sabedoria instantânea respostas vazias ou demasiado simples para realidades complexas, indago se haveria modo outro para melhor descrever a angústia, senão como uma espécie de batalha interior, como num duelo, onde somente um sobrevive. Se com ela subimos ao ringue, ou a destruímos, ou ela nos destrói. Em casos extremos, ou ela mata, ou ela morre. Vence quem durar mais. E neste sentido, vale aqui lembrar, o velho Santiago de Ernest Hemmingway bem sabia o que significava ser derrotado, mas jamais destruído. Ele morreria de fome, derrotado pela carestia material, mas não seria jamais destruído; ao contrário de seu criador que, curiosamente, cometeria suicídio anos após a publicação de O velho e o mar.
A partir de tais leituras, questiono, ainda, se o individuo angustiado teria sempre diante de si a escolha entre o certo e o errado – e sucumbe diante do mal por pura covardia ou por cálculo –, ou se a consciência anuviada e envenenada pela angústia de antemão surrupia-lhe a discricionariedade no que toca ao modo como responde aos seus demônios interiores. Ladeando Albert Camus, para quem a única questão filosófica realmente importante ao homem seria o suicídio, questiono o que faz o monstro crescer ao ponto de matar o hospedeiro, ou mesmo quem quer que encontre pelo caminho.
E reconheço Jakyll e Hyde, em cada um de nós. Que vença o melhor.
Rafael A. Teles, 04 de dezembro de 2022.
Morro do Livramento.
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