Não há, no mundo, minúscula criatura para quem a existência não seja um sarcasmo.” — G. K. Chesterton, em sua Ortodoxia.
No início da semana tive o grato privilégio de encontrar-me, uma vez mais, com os dois pés em terra firme diante do mar aberto. Eis uma experiência que, para muitos, não carrega em si mesma qualquer senso de novidade; é mero cotidiano banal. Quanto a mim, eu dificilmente conseguiria divorciá-la daquele espanto inicial, quase paralisante, que costuma fazer-se notar sempre que a fragilidade humana adverte-se a si mesma diante da força bruta da natureza.
Aproveitei o ensejo para, no meu mais sagrado íntimo, estimar com gratidão a oportunidade que ali me fora dada. E então rendi graças ao mesmo Deus que, encarnado noutras bandas, sobe em goiabeiras e causa calafrios de afetação e ojeriza em jornalistas ávidos por parir crises no governo. Ali em silêncio, eu deleitava-me; em espírito, contemplava. Era o gozo de uma sensação de pertencimento. Era o lar fora do lar. Algo que em nós só se manifesta diante de um contraste escancarado entre a mesquinhez do nosso papel cotidiano burguês e o mundo natural — esse impávido colosso que não dá conselhos nem pede desculpas.
Tendo então o mar aberto como objeto observável diante de toda a extensão da minha vista — tão lindo quanto mais inóspito e aterrorizante — não pude deixar de me satisfazer na constatação de que não havia ali, no meio daquela imensidão de tons de azul, nenhum burocrata em atividade. Nenhum tirano legislador de homens. Ali não havia reuniões sindicais, prazos prescricionais, multas por inadimplência. Na presença do mar marulhante que abraçava-me os olhos não havia gabinetes e repartições públicas. Eu estava metido até as tampas num tipo raro de portal para outra dimensão onde não havia inveja, vaidade, fuxicos, rabugens, e tampouco opiniões e achismos pedantes. Eureka! Era o fim da palpitaria universal!
De súbito, aliviado me dei conta de que as discussões ideológicas de última moda não eram ali sequer cogitadas. Ali, nenhum direito a mais ou a menos acirrava disputas judiciais, afinal, ubi societas, ibi jus! — berrava em silêncio o oceano azul turquesa, mais eloquente que Marco Túlio Cícero nos debates da República.
Tampouco havia diante de mim a opção entre açúcar e adoçante, Sky e GVT. Ali nunca se ouvira falar em marketing multinível (seja lá o que isto queira dizer), propaganda, carteira de investimentos e clínicas de estética — quiçá as casas de aborto da maldita Planned Parenthood! A penicilina ainda não havia sido descoberta; a roda, sequer concebida em pensamento! Em suma, não havia o menor sinal da sub-realidade dos homens com seus constructos mentais e materiais. Eu estava ali, diante da realidade imediata mesma, apenas, tanto mais pura e perfeita quanto e caótica e indomável — o Eterno Legislador. Ou nas palavras de Thomas Mann, muito melhores do que as minhas:
"Nesse lugar reinavam o próprio esquecimento, a bem-aventurada imobilidade, o estado inocente da ausência de tempo. Era o relaxamento praticado com a melhor das consciências, a miragem apoteótica de todo o tipo de negação do imperativo ocidental da ação." — A Montanha Mágica.
É daí que ocorreu-me também um paradoxo existencial momentâneo, na forma de um inevitável tsunami de perguntas às quais eu mesmo deveria responder — quem sabe, devido ao fato de serem meus os pés que estavam ali naquele momento apoiados em terra firme.
Quanto sangue foi derramado para que a humanidade se multiplicasse e chegasse ao estágio tecnológico e civilizacional em que chegou, mesmo que todo esse sacrifício não nos acrescente a certeza de um segundo de vida sequer que não esteja submetido ao império do inesperado? Foram-me por acaso outorgados poderes para supor e presumir acerca de realidades alheias? Acaso, fui eleito — criatura chinfrim que sou — tutor das vontades futuras e censor das passadas, pelo mero arbítrio da minha subjetividade?
Com que autoridade poderei eu atrever-me a ignorar, senão subverter — “desconstruir”, “ressignificar” (em bom academiquês corrente politicamente correto e nauseabundo) — a sabedoria e o conhecimento acumulados ao longo de milênios de tradições que me antecedem? Refiro-me ao legado da humanidade que me carrega sobre os ombros para que eu melhor observe e compreenda não só a paisagem que me cerca, mas também o meu lugar nela. Por que fantasiar-me de juiz diante daqueles que, antes de mim, administraram crises infinitamente mais reais e perigosas do que as que hoje roubam-me o sono?
É somente porque um esforço humano descomunal já foi empreendido antes de mim, que hoje posso concentrar-me no saneamento de problemas momentâneos, pseudo-hercúleos, tais como encontrar o controle remoto da TV perdido na sala ou tecer críticas sacais a um tal obscurantismo religioso do Medievo enquanto assisto a documentários na Netflix e sacio a minha sede de justiça com refrigerante Schweppes Citrus. E tudo isso, do alto de minha estatura existencial de gnomo de jardim! É somente porque a grande maioria dos problemas mais severos da humanidade já foram ou estão em vias de ser superados — em grande parte pelos esforços do Cristianismo, by the way — que eu sequer me lembro que eles um dia existiram. Inúmeros. Imprevisíveis. Incontáveis.
Obviamente, toda essa herança que hoje recebo não brotou da noite para o dia como que por um abracadabra. Por quantos séculos a fio (milênios, em verdade) o Cristianismo teve de insistir para que as sociedades mais antigas — aquelas que tinham a escravidão como base — se reorganizassem de forma que a dominação absoluta de um ser humano por outro passasse a ser vista como conduta moralmente reprovável? Como olvidar que o oposto disso — a barbárie — foi realidade soberana ao longo de quase toda a história conhecida da humanidade? Como negar que só enfrentamos hoje o problema da obesidade porque o da fome já não é mais regra geral entre nós? Foi somente depois que os grandes problemas foram superados, que os problemas remanescentes — e os menos passíveis de solução rápida — foram ocupar um lugar central na consciência hodierna do Ocidente.
Enfim, a vida terrena passa como um sopro de brisa na praia. É um tropel de paixões que nos arrasta. Quanto a mim, logrando tomar pé e parte do diálogo das verdades, virtudes e valores universalmente comunicados e partilhados por todos os humanos de todas as eras — aquilo que Mortimer J. Adler um dia chamou de "a grande conversação" —, quem sabe terei cumprido a minha singela obrigação de não comportar-me como um fardo, estorvo para os meus semelhantes. Besta humana atomizada na província do tempo presente. Nulificada. Estupidificada. Melhor dizendo: um caipira da pós-modernidade que todos os dias cospe no prato em que come. Cachorro que morde a mão que o alimenta.
Rafael A. Teles, janeiro de 2019.
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