A vida é uma coisa nua. O requisito primeiro da nudez é a vida, fenômeno próprio da condição, da natureza do que está nu. Só o que vive pode estar nu, projetando-se, florescendo-se, ruborizando-se em torrentes escarlates de sangue quente. “É conditio sine qua non!”, bradariam os juristas — aqueles de antigamente, digo; os de hoje desprezam o latim. Nus é como atracamos o nosso barquinho a vela ao grande cais do porto da vida. Nascemos nus, afinal. O Ser é nu, e não se esconde, em hipótese alguma. No alto de um promontório haverá sempre um farol exibindo luz e resplendor.
Nós, porém, a tudo falsificamos. Falsificamos a nudez e, portanto, falsificamos a vida. Cobrimos a nudez — inerente ao estado de ser vivente, autêntico — com tudo e qualquer coisa que possamos encontrar pelo caminho. Folhas, farrapos, máscaras, paredes, burocracias, papeis que, produzidos pela burocracia e pendurados nas paredes, atestam status. Folhas que secam e apodrecem, farrapos que não aquecem, máscaras que não disfarçam, paredes que nos afastam, burocracias que bloqueiam, papeis que atestam, apenas. Atestam, pois testemunhar não podem. Tivessem olhos para ver, não atestariam; diriam: “É falso! É tudo falso!”
Nisto concluo ser impossível que o mito do Jardim do Éden seja apenas mito. Aquilo é a mais brutal realidade: o primeiro objeto de ocultação, de falsificação, de fraude, foi a nudez. Desde sempre tentamos escondê-la, envergonhados, derrotados por más inclinações. O leitor amigo poderá objetar, obviamente, afiançando a ideia de que crendices religiosas, obscurantistas e medievais, não nos cabem mais em tempos de esclarecimento científico e de avanços tecnológicos. Contudo, insisto que só podemos crer em duas hipóteses igualmente absurdas: na veracidade da narrativa do Gênesis, ou na invencionice da mente humana, supostamente capaz de criar ex nihilo uma história daquelas, com explicações assim tão universais e atemporais acerca de nossa condição – destacado o grande mérito de serem dadas sem a tentativa cínica de maquiar a nossa própria fama imemorial de falsificadores do real, inclusive. Desconfiado da categoria humana, tendo-a num descrédito realista e perfeitamente ciente de estar nela incluído, é assim que filio-me à primeira hipótese, mais verossímil.
Se num dia desses, se num belo dia qualquer, restar peremptoriamente comprovada a não-existência de Deus (e jamais nos esqueçamos de que o ônus da prova cabe aqui aos incrédulos), ainda assim, mesmo completamente inexistente, perfume de uma flor que não se sente, mesmo integralmente nulo, no cadafalso aniquilado pela bala de um verdugo, mesmo reduzido ao absoluto nada, fetiche da razão depauperada, Deus ainda será, nada obstante, digno de maior confiança do que toda a assembleia humana.
Neste ponto, necessito melhor explicar-me. Parece-me óbvio que, quando falo de nudez, não me refiro unicamente ao tom sexual da palavra, reduzindo-a às pulsões do baixo-ventre e da linguagem da cultura de massas. E rogo ao leitor que assim me leia, considerando todo o capital simbólico da palavra. Falo da nudez para além do aspecto físico. Se a nudez do corpo aparece muitas vezes no Ocidente como um signo de sensualidade, aqui falo de nudez como quem fala da verdade, de algo imaculado, de pureza física, moral, intelectual e espiritual. Algo que, de tão perfeito, de tão sublime, é de sua própria natureza o mostrar-se, assim como o pavão mais belo que se realiza na ostentação graciosa da beleza de suas penas. Se falo da falsificação da vida que decorre da vergonha da nudez primordial, refiro-me, sobretudo, a uma queda de nível vital, como o símbolo de um estado de ocultação criminosa de tudo o que nasceu para ser manifesto. Falo da fraude universal, da qual somos partícipes.
Há na Divina Comédia um trecho que, a meu ver, descreve o que talvez seja a melhor imagem da fraude já concebida artisticamente, útil sobremaneira para também entendermos aqui, o ato de esconder, a via do disfarce, como uma espécie de anti-nudez. No canto XVII do Inferno, referindo-se ao monstro Gerião, Dante descreve uma fera alada que, surgindo das profundezas de um abismo escuro, pousa na beira do precipício, defronte Dante e Virgílio. Rosto de homem justo e corpo de serpente, sorrateira, a besta se apresenta, mas não puxa para cima a cauda inteira. Na tradução portuguesa de Vasco Graça Moura:
E aquela torpe imagem que defrauda
lá veio e avançou cabeça e busto,
mas sobre a borda não puxou a cauda.
Por face tinha a face de homem justo,
tão benignas feições fora revela;
e de serpente, o resto era robusto;
E por que o monstro infernal oculta de Dante e Virgílio a cauda? É que Gerião simboliza a própria visão da fraude, que consiste na mera aparência de retidão que necessita, no fundo, esconder o elemento corruptor. Para subsistir, a fraude depende, necessariamente, do ato da ocultação e de um cerne de verdade. Daí que, na tradução de Italo Eugenio Mauro, lemos:
Toda a sua cauda se torcia no vão,
levantando a forquilha peçonhenta,
armada à ponta, como de escorpião.
Não se acende uma candeia para escondê-la debaixo da cama. A verdade é uma espécie de luz, também simbolizada pela pureza, transparência, clareza, honestidade, pela nudez primordial de Adão e Eva que, como crianças, dela não se envergonhavam diante de Deus, pois neles ainda não havia maldade. A expressão popular que fala de uma “verdade nua e crua” é um pleonasmo, uma redundância, um lugar-comum.
Não é de se estranhar que humanidade se mova num impulso bastante curioso, fechando-se cada vez mais, como em casulos. E esconde-se. E divide-se, segrega-se, progressivamente. Capsulas de proteção para encobrir a mais pura vergonha da nudez existencial. Casulos! Dia desses, eu via um sujeito que andava na rua como um caracol, vergado, emborcado, frágil como geleia, arrastando pela calçada a sua pesada concha de proteção para, ao menor sinal de interferência externa, fechar-se ainda mais, deixando de fora apenas as anteninhas políticas. Tinha susto e espanto naquele olhar. Desmascarado no meio de um surto viral, eu exibia a mais abjeta forma de nudez jamais vista, intolerável.
O casulo é um fenômeno que salta aos olhos justamente por denunciar-nos o expediente de falsificadores por excelência. Basta um exercício de comparação entre as intenções declaradas e as atitudes práticas tomadas no campo do comportamento e das diversas lutas políticas, e logo veremos que estão todos de treta. Todos, sem exceção. E quanto mais veemente forem as intenções declaradas como fundamentos morais de uma mentalidade sectária, casular, caracolesca, quanto mais tomarem tais declarações a forma de palavras de ordem e de manifestos, mais incoerentes com o discurso (proclamado com a face de homem justo de Gerião) serão os atos e as consequências correspondentes.
Até hoje lembro-me daquele dia em que, no auge da minha adolescência covardemente esticada como um puxadinho até os vinte e tantos, eu passeava livre por um mundo absolutamente fascinante, lisérgico, cult, em que fui convencido pelo acaso (ou por John Lennon ou Dan Brown, talvez), acerca do imparável progresso da humanidade. E ainda que eu, até hoje, desconheça a origem de tal ideia, ainda que eu sequer tenha a consciência de que nela confio cegamente, acredito na evolução ascensional retilínea de todas as coisas. O mundo começa em Darwin. Começa em Darwin, evolui, passa por todas aquelas teorias eugenistas de superioridade racial (“darwinismo social!”, confessam os mais assanhados) e finalmente termina no comunismo universal. É para lá tudo se move, tudo converge, num crescente melhoramento. Eu havia saído da idade das trevas para, como uma águia, finalmente sobrevoar a idade das luzes e lá de cima observá-la, fulgurante, irretocável. A história é um cavalo branco que podemos cavalgar rumo aos campos verdejantes da justiça-social. Um futuro dourado, o novo, sobrepuja o passado, o velho, o antiquado, o reacionário.
De todos nós, é entre os jovens que se encontram os melhores guias! Engaje-os! Excite-os! Equipe-os com um título de eleitor — agora, neste momento! E não se incomode com algumas janelas quebradas, com as camas por fazer. Janelas são quebradas por puro idealismo, por uma sede de justiça da qual só os jovens padecem de paixão. Uma sabedoria oracular que só a juventude é capaz de apreender, ainda que incapaz de o endereço do cesto de roupa suja aprender. Por que diabos Nelson Rodrigues, indecente, foi tão implacável com os jovens? “Envelheçam depressa, com toda a urgência! Envelheçam!”, dizia, o velho reacionário.
Ironias à parte, é justamente por nos deixarmos levar por sandices que, invariavelmente, retornaremos a passos largos, como já se vê acontecer, ao tribalismo sectário, minoritário, identitário. Até que o ideal social se fulmine a si mesmo, autofágico, e termine em atomização absoluta, a exasperar-se na luta, até derramar a última gota, de sangue, de pus e de cicuta. Com os joelhos muito dobrados no altar da ciência como matéria de fé, sempre atentos à pregação das mídias de massa que celebram a missa da religião civil, abençoados miraculosamente pela tecnologia que nos faz celebrar dia após dia as muitas apoteoses da evolução civilizacional até então jamais pensada, regressamos — como o cão que come o próprio vômito — ao lugar do comportamento tribal, do primitivismo que degola, bebe o sangue e chupa as tripas de indivíduos integrantes de tribos rivais, sorvendo até a exaustão o caldo contido em cada bago, em cada caroço de um coágulo sangrento. E na eterna guerra do bem contra o mal, o vilão, o inimigo, o infiel, o pagão, o negacionista, o qualquercoisista (insira aqui o adjetivo de sua estima: ..............................), será sempre, sempre, o outro. Temam e tremam diante do progressismo tecnocrático. O ideal civilizacional, sem Deus, tribaliza-nos.
Penso que um dos muitos méritos do Cristianismo foi justamente o redirecionamento da eterna guerra do bem contra o mal para o campo de batalha em que ela é de fato travada essencialmente: o espírito humano. Não é possível exercer verdadeira empatia sem a consciência de que a guerra no mundo começa em mim. Minha alma é a verdadeira trincheira. Se não reconheço a mim mesmo como um falsificador primordial de tudo quanto há, jamais olharei com piedade a falsificação perpetrada por outrem. Expurgando das glândulas o visgo peçonhento, da queda alheia não me compadecerei jamais! Se não me reconheço como um sujeito portador da semente do auto-engano, serei sempre o primeiro — do alto da minha estatura existencial de anão de jardim — a julgar-me sabedor de todas as respostas de que o mundo clama e necessita. Vinde a mim! E eu vos foderei! E todos terão de me engolir, para o seu próprio bem. “O choro é livre”, disse a Maju.
Há casulos de toda sorte, para todos os gostos, todas as castas, para todos os looks e tendências. Deixo de empregar aqui o termo “bolhas” — já esvaziado pelo uso até mesmo inadequado, a meu ver —, posto que nele temos a imagem de algo demasiado frágil. O invólucro fantasmagórico da alienação humana, em verdade, não se rompe na suavidade do toque. Tente demover um sujeito qualquer de sua alienação habitual, de sua comodidade bovina, de sua escrotice fundamental, e ele se estrebuchará como um touro violento, furioso, ferido e acuado. Com efeito, casulos são rompidos de dentro para fora, num movimento interno que depende, exclusivamente, da maturação (e por que não da maturidade?) do ser que lá dentro se forma, uterino. Mais uma vez, peço ao leitor amigo que não me leia mal: todos temos o direito a alguma quota de imaturidade, a um planisfério de consciência reduzido por uma limitação própria da nossa condição e pela força das circunstâncias. O direito que não temos, de maneira nenhuma, é o de fugir à realidade, desacreditados da verdade, ao ponto de negá-la, evitá-la, fraudá-la, acostumando-nos a um estado de alienação e de torpor, indefinidamente, culpados do crime de dormir o sono da banalidade bovina quando deveríamos estar bem acordados; não em casulos, sepultados.
O big deal de nossa era, creio, é nos permitir viver, consciente ou inconscientemente, muito bem aconchegados em nossos casulos morais, sem precisar dar muitas explicações para os que ficam de fora. Tanto faz, no fim das contas, se temos ou não a consciência dos nossos claustros auto-induzidos. Casulos são inevitáveis. E confesso não saber muito bem ainda se é melhor tê-los às claras ou às escuras. Tudo é falsificação, no final das contas. Os movimentos políticos de nosso século produziram modelos de casulos muito bem adornados, com grandes letreiros bem coloridos e luminosos que os permitem ser identificados de longe, chamativos, com grande orgulho. Pride!, diriam. Outros, mais modestos, passam desapercebidos, discretos, como campos de força invisíveis, nem por isto perdendo o poder alienante, que tudo banaliza. Esta é a condição humana. Casulos! Rompê-los ou não rompê-los?, eis a questão!, diria Shakespeare, ao descrever o teatro do mundo, do qual não quero participar.
Outro dia, passei pela cozinha e li na tela da Alexa: “saiba como as vacas produzem o leite”. E logo pensei, sarcástico: fala-me de como os mares produzem o peixe...”. Num primeiro momento, a trivialidade exagerada pareceu-me, de fato, uma afronta à inteligência de quem possui instrução mínima e condição suficiente para adquirir uma bugiganga daquelas — um robozinho digital de merda que fala as horas, dá dicas de ginástica e toca música. Mas logo tive de reconhecer: há mesmo um abismo entre o leite e o produto leite, entre a origem no campo e o destino nas urbes, entre os mares e o peixe, entre a experiência milenar e a facilidade industrial que faz nascer em gôndolas o fruto sagrado da natureza.
Pode ser espantoso, mas é um fato: há não poucas pessoas em nosso meio, com smartphones luminosos em suas mãos bem hidratadas, que não sabem bem de onde vem o leite que bebem. Sequer cogitam, efetivamente, o que é aquele líquido branco ou como caixinhas cartonadas em tetraedro chegam até elas com líquido dentro. E apenas o bebem (na mais irônica das ironias) bovinamente. Casulos! Tais pessoas são poupadas até mesmo do esforço de ter de desconfiar se aquele líquido é mesmo leite ou alguma mistura qualquer, adulterada. Leite de vaca ou de peixe. Desatentos, não atinamos com a quantidade monstruosa de energia, de esforço e experiencia necessários para que um prato feito de arroz com feijão, salada, bife e ovos fritos, nos chegue à mesa. É como se todas as peças do carro que nos transporta aparecessem ordenadas na garagem, na forma estanque de um carro, por ordem de um abracadabra entoado no micro-ondas. É como se a água quente e relaxante do chuveiro elétrico de lá vertesse diretamente do parque aquático do Monte Olimpo, de onde borbulha a água fervente pelo bafo fumegante de um dragão rosado vestido de vendedor do McDonald’s.
Conceba um vaqueiro de meia-idade que viveu a vida toda no sertão da Bahia. Ousemos imaginar! Um homem que, pelo costume, entende a natureza de tal modo que o cavalo lhe tem afeição e respeito. As vacas reconhecem-lhe a voz e o seguem pelo pasto. Um homem que assenhora-se do tempo, adona-se do clima, da terra, das plantas, dos insetos, dos animais, dos cheiros, dos ruídos, das marcas e dos rastros espalhados pelo chão. Ofereça-lhe pão de padaria para o café da manhã e ele dirá que “o café do homem é cuscuz com leite e rapadura”. Convide-o a um passeio no carro novo até a cidade grande mais próxima e ele, dando ombros, dirá que “só vou quando tem precisão”. Qual seria a reação deste homem ao dar com a Alexa exibindo-lhe dicas e instruções sobre a origem do leite? Que sentido fazem para ele as discussões políticas de última moda? As ideologias? As franjinhas todas iguais nos cabelos descabelados das mocinhas de cidade grande absortas em feminismo militante adolescente enquanto amontoam-se num shopping? Casulos!
Nosso vaqueiro vive uma vida tão incrivelmente diversa daquela vivida por um jovem universitário suburbano encantado com as palavras de ordem das propagandas políticas identitárias, que é como se fôssemos todos estrelas errantes, cada uma em sua galáxia particular, separadas por anos-luz. E por que o casulo urbano sempre se mete a pautar o casulo interiorano e rural, impondo-se sobre este como superior em matéria de conhecimento? Com que direito? E por que quer a autoridade teórica impor-se sobre a experiência prática? Com que petulância ridícula o novo se impõe sobre a tradição! Quanto tempo um sujeito pós-doutor em ciências sociais sobreviveria, sozinho, embrenhado na mata sertaneja, com um cavalo e um canivete, escoltado por marimbondos, mosquitos e urtigas? E um vaqueiro experiente que “não tem precisão” de currículo na Plataforma Lattes nem conta no LinkedIn? Como conciliar estes dois mundos sem a consciência de que, por não ser Deus, sendo incapaz de apreender todo o espectro da realidade, dela o homem se esconde invariavelmente, na mesma medida em que se envergonha da própria nudez?
Se o homem não pode conceber a totalidade do real em seu horizonte de consciência, em seu planisfério moral, posar de guia do mundo é um ato tirânico e vagabundo. Cegos guiando cegos, até caírem ambos no abismo, disse Jesus Cristo — ou como a vaca que vai para o brejo, diria o nosso sertanejo. É por isto que o desejo megalomaníaco de tutelar politicamente a sociedade à revelia dela mesma é, no mais das vezes, o mais cínico pretexto para controlá-la. O simples fato de haver, hoje, mundos e fundos de classes elitistas de pessoas muito abastadas, empenhadas diuturnamente, exclusivamente, num melhoramento não orgânico do mundo, é um sinal de decrepitude. Ideias enlouquecidas que enlouquecem pessoas, diria Chesterton. Eis o que explica Bill Gates, direto de seu casulo meta-capitalista high-tec, bebendo água de cocô.
Chegamos enfim ao cerne, à cereja do bolo deste meu ensaio sobre a mentalidade casular, caracolesca, estando este que vos escreve já precavido de que, neste ponto, o leitor atento certamente poderá vir a impugnar meus argumentos, supondo que este texto, por demais intoxicado de carolice cristã, é também uma confissão de quem se isola, alienado, num casulo religioso. Em alguma medida, tal objeção é acertada. Nada obstante, vale nos debruçarmos um pouco mais sobre os pormenores, já que o diabo mora nos detalhes. Ademais, é sempre um prazer dar tragos e baforadas no fumo das sutilezas.
Recordo ter dito em linhas alhures que a narrativa do livro do Gênesis tem grande mérito justamente por não ocultar o fato de que o ser humano, desde a queda no Jardim do Éden, já nasce nadando de braçadas no dom da canalhice, mancha que carregamos, hereditária. O emblema da fraude que nos grudou na pele, no espírito, e nos deforma. E como remediar a deficiência senão reconhecendo, primeiramente, que ela existe? Terceirizando as culpas, como sugere-nos a pseudo-sabedoria moderna do “bom selvagem” parido por Rousseau? Ora, até mesmo o expediente da terceirização da culpa já estava dado no Éden! Fato é que, entre as visões de mundo que neste texto se degladiam há uma salutar diferença de idade. E isto me basta em matéria de credibilidade.
A crença na explicação transcendental do Ser é uma velhinha que anda por aí pelada, livre, sem dar a mínima para o falatório, muito sábia e obstinada, comemorando aniversários de milênios a fio que remontam a não se sabe quando. Seu nome é Tradição. Tradição é um verbo, conforme a etimologia e a origem latina do termo. Do latim tradere, entregar; traditio, ação de entregar. É um ato, uma ação de entrega das experiencias passadas às novas gerações (aos novatos, aos infantes, aos inexperientes), repetida por essa velhinha que nunca falhou no seu ofício, nem por um dia sequer, e que por isso já não precisa mais provar nada para ninguém. “Envelheça, Rousseau. Depressa, com toda a urgência! Envelheça!”, risonha, diz a velha tradição. Se casulos são inevitáveis, eis o único aceitável. A única tecnologia capaz de transformar, em matéria simbólica e existencial, abrigos de pau-a-pique em fortalezas de verdadeira segurança. O que passar disto é quinquilharia primitiva e obsoleta.
Rafael A. Teles, maio de 2022.
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