Não quero morrer sem dizer que ainda hoje sinto por demais saudades da primeira casa em que morei. Comedida, solene. Acolhedora. Verdadeira projeção análoga ao conchego placentário, de tão bom que era habitar ali. Palco inaugural da minha meninice. Estimo que ali passei ao menos três anos da minha vida. Dos seis aos nove, talvez; aos dez, a família já estava noutro lugar, a casa já era outra, e outro deve ser o escrito a destilar-lhe lembranças.
Papai havia recebido da firma, como beneplácito contratual, a proposta de mudar-se com a família para uma de duas casas vizinhas, à sua escolha, situadas num terreno que mais tarde viria a tornar-se um grande condomínio edilício, cinza e indiferente. Subindo a rua, na mão direita, a primeira opção era uma casa frondosa, imponente, bem-acabada. Era bela, mas exagerada. Tão exagerada que sua construção comeu o quintal, que se resumia a um pequeno corredor de cimento pintado à frente. A alternativa era a casinha ao lado, para a qual nos mudamos. Uma espécie de antítese da primeira. A simplicidade e a enxutez de sua construção contrastavam com o tamanho do quintal, estrondoso, violento, coberto de britas e recheado de árvores frutíferas que faziam do lugar um campo mágico para um menino como eu. Por sorte minha, meu pai a escolheu, em detrimento da primeira.
Aquele foi um pedaço da minha vida em que muito do que a mim ocorreu perenizou-se no fundo de um baú da alma. Cristalizou-se. Aconteceu e torna a ocorrer sempre que para lá retorno em pensamento.
O que um dia aconteceu jamais desacontece: os primeiros animais domésticos com que tive contato; as expedições de exploração de um ambiente que, para um menino, era um Vietnã inexaurível (o quintal); as primeiras surras antológicas que levei de meu pai, e também os momentos de carinho e afeto sempre abundantes; o banheirinho rústico de chão verde encerado; a porta bege trancada com um pino; meu irmão tentando dissolver no vapor da água quente do chuveiro o cheiro do sabonete Phebo, imaginando estar numa sauna; minha tia e seus discos de vinil do Oswaldo Montenegro; minha mãe descascando verduras para a sopa do jantar (segunda-feira era dia de sopa); a mesa cheia de quitandas, com todos em volta para um café da manhã especial de domingo; as balinhas que roubei na venda e que renderam-me uma surra homérica; cigarras, calangos, ciriguelas, suco de manga, pão com manteiga e açúcar, feijoada, o uniforme azul da escola, bitucas de cigarro, pasta de dente Kolynos... Enfim, reminiscências.
Certo dia, com uma travesseirada, quebrei a orelha do cachorro. Ao menos imagino que a quebrei. Talvez não seja bem assim, mas Elvis permaneceu, até o fim da vida, o vira-latas de apenas uma orelha em pé. Com seu pelo caramelo e orelhas pretas, destacava-se pelas quatro patas bem branquinhas. Parecia que andava de meias, nas nuvens. Minhas primeiras relações com os bichos tiveram desses traumas. Desatento, pisei num de nossos ratinhos de estimação, também branquinho, alvo mais que a neve. Esmagado na brita, os olhinhos vermelhos esbugalhados, ele estrebuchava de dor, mas não me lembro exatamente de sua morte. Creio ter visto um pouco de sangue. Não fiz por mal.
Melhor sorte não tiveram os calangos que ousavam entrar em casa, habitualmente incinerados quase que de imediato, especialmente se iam parar no banheirinho de chão verde encerado. Aquele local era também um matadouro. Suas patinhas escorregavam no chão liso, tornando-os presa fácil para um menino armado com uma garrafa de álcool e uma caixa de fósforos, tiradas não sei de onde. Fiz por maldade pura. Pintinhos coloridos, também morreram, eventualmente. Ali, pela primeira vez vi a morte: ao fundo da casa, uma cabeça de galinha era carcomida por vermes esbranquiçados que lhe saiam dos buracos dos olhos.
Recordo bem aquele quintal de britas escuras. Do pé de ciriguela bem ao centro, bifurcado e esguio, da goiabeira, da mangueira, do pé de cajá-manga que ladeava o muro frontal e servia-nos de escada para subir (eu e meu irmão) até podermos enxergar a rua e, de lá, do alto de nossa torre de vigia, atirarmos pedras nos meninos da rua, numa guerra absolutamente excitante. Não me estranha o fato de lembrar-me mais da área externa de nossa casinha do que se deu interior. Não recordo em detalhes sequer do meu quarto, que não passa de imagens soltas num lusco-fusco de pijamas. É que o meu mundo de descobertas ficava do lado de fora: a cozinha, a mesa da família, os discos da minha tia, o banheirinho de chão encerado verde-esmeralda, e obviamente o quintal, eram todos do lado de fora. O que me causa espécie é hoje reparar a criançada da classe média reduzida a limitadíssimos campos de experiência com a terra, o chão e a rua — tudo o que foi palco da minha primeira meninice. As memórias de apartamento não têm cor.
O leitor atento deve ter notado que o chão do banheirinho marcou-me profundamente. Era vivo por si mesmo, brilhava num verdor irresistível, mesmo sendo de cera barata. Cimento e cera. Não éramos exatamente pobres, mas não havia luxo algum em nossa casa, senão o da vida mesma que pulsava, abundante. Quando molhado, secava-se o chão com o rodo. A torneirinha do chuveiro também ressurge agora em minha lembrança, como uma fênix, douradinha, uma borboletinha semi-enferrujada que demandava mil e uma voltas em torno do próprio eixo. Se continuar a puxar este fio de reminiscências, chegarei ao dia em que, após assistir na tevê de tubo a um filme da Sessão da Tarde, roguei a todos os deuses do Olimpo que me transformassem num lobisomem. Um lobismenino, evidentemente. E o ritual ocorreu, sem sucesso, debaixo do chuveiro, sobre o manto verde-esmeralda de cera. Certamente, a noite não era de lua cheia.
Também sob aquele chuveiro meu pai um dia me levantou — era mais um rito de passagem. Pegou-me nos braços, abraçou-me e pediu, um tanto comovido talvez, que eu jamais mentisse para ele. Não sei ao certo se eu havia mentido em alguma ocasião qualquer e ele agora distribuía as reprimendas devidas. Não me lembro se foram as balinhas que roubei. Não se dizer se ele estava, naquele momento, sob o efeito de algumas cervejas a mais. O que sei dizer é ser esta uma das mais belas lembranças que guardo de meu pai. Talvez se me tenha incutido ali o valor da verdade, e que, ainda que dura, dela decorre afeto e verdor. Afeto divino, verdor edênico, talvez. Para mim, tudo veio do mesmo lugar.
Rafael A. Teles, maio de 2023.
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