Ao que me parece, à sociedade contemporânea é devido o mérito de ter simplificado sobremaneira a resolução teórica da grande maioria dos dramas humanos. Teórica, eu disse. E mais: arrisco ainda dizer que, especificamente no que diz respeito aos últimos cem anos (refiro-me a expediente que desde então opera num crescendo que chega até os dias atuais), basta um artifício de linguagem, quando bem arquitetado — quase mágico, quimérico — , para fazer-nos crer piamente no que até então seria absolutamente inconcebível. E altera-se a natureza das coisas. Inverte-se o ônus da prova. Revoga-se a realidade.
Falo, portanto, da destruição da linguagem consagrada em norma culta, como já apontou Eric Voegelin, levada a cabo através de inúmeras operações simultâneas muito bem premeditadas por bem-pensantes e engenheiros sociais, como uma espécie de expediente de encantamento. Não é por mero acaso que o sistema educacional inteiro (sobretudo as universidades) passou a servir como uma grande oficina de ciclopes onde, pela manipulação de anexins políticos de quinta categoria, se forjam os temerosos raios gama capazes de aniquilar deuses e mortais — e também os escudos capazes de proteger as traficâncias do pensamento político que toma de assalto a realidade inteira e subverte a sociedade à força, como num estupro rumo a um mundo melhor. Na escola, crianças de treze anos já se debruçam, obstinadas, sobre temas de reforma agrária em aulas de geografia, não sabendo localizar o rio São Francisco no mapa, não sabendo distinguir entre caatinga e cerrado, desprovidas de qualquer noção basilar de direito de propriedade, senão enviesada. Indefesas, não logram sair imunes, por si mesmas, de uma teia de devaneios.
Isto talvez explique como, de repente, gente de boa criação se vê convencida de que basta cravar um S de “social” em qualquer ideia (cuja origem, via de regra, é pela esmagadora maioria desconhecida), para justificá-la instantaneamente, legitimando assim pautas políticas absurdas, antinaturais ou mesmo criminosas. E a transfiguração de uma ideia enlouquecida em fato consumado estará sempre a uma eleição presidencial de distância. Eleições. Nas palavras do imortal Euclides da Cunha, sobre o fetiche, sobre o clichê, das eleições: “eufemismo que é entre nós o mais vivo traço das ousadias de linguagem” quando “sobrevém a quadra eleitoral, dos conquistadores de urnas” que “transformam a fantasia do sufrágio universal na clava de Hércules da nossa dignidade".
E a mágica acontecerá, ó reacionários incrédulos e mentecaptos! Basta garantir-se, pela força da burocracia estatal embalada em propaganda jornalística, a exasperação da ideia sobre a realidade.
Pleno, o homem engravidará; e a mulher, empoderada, será o tirano patriarca mais viril que jamais houve. De ofício, estará extirpado do coração humano todo o ódio. Aqueles que não são bem-vindos neste mundo, vetados por lei, nele sequer nascerão — e logo tornarão ao não-ser em caso de acidentes de nascimento. O mal tornará em bem e o bem tornará em mal. Todo jovem sagrar-se-á doutor nalguma ciência de ponta, gratuitamente, através das bolsas governamentais — nenhum jovem a menos. As raças todas diluir-se-ão num capuccino uniforme em nome da diversidade humana. Ser diverso é ser igual e ser igual é ser diverso, tanto faz. A cadeia alimentar, ressignificada, será prisão perpétua para predadores. As muitas injustiças, de plano, cessarão. A pobreza estará para sempre extinta. Seremos enfim, todos iguais, estirados no leito de Procusto.
Mas voltemos sem delongas ao que eu estava dizendo. Ausente o carimbo burocrático do S de “social”, a Justiça não é justa, mas instrumento de opressão de gente pobre. Só a Justiça Social é verdadeira — mais Trasímaco; menos Sócrates. Faltante a chancela cartorária do S de “social”, a democracia não é democrática, e não passa de outro instrumento de opressão de gente pobre. E assim seguimos, ad infinitum. Às vésperas da Revolução de Outubro, Lenin já concebia, em O Estado e a Revolução, que só o comunismo poderia entregar à sociedade humana a verdadeira democracia, puríssima, alva mais que a neve. Aqui a palavra é a mesma (democracia), contudo, na boca de Lenin, torna-se mágica. O comunismo é a ponte que se estende sobre um rio de sangue, e devemos atravessá-la numa chuva de balas, ainda que ninguém logre chegar vivo do outro lado.
Neste estado de coisas, não é por acaso que, no calor das discussões de boteco, qualquer tentativa de entendimento mútuo por parte de indivíduos que sustentam posições antagônicas acabe, geralmente, por perder o objeto, restando inócua, improdutiva, haja vista que os símbolos da linguagem foram manipulados para fins utilitários. Em um de seus mais notáveis poemas, T.S. Elliot nos diz: “As palavras deformam-se, estalam e quebram-se por vezes, sob o fardo, sob a tensão, escorregam, deslizam, perecem, definham com imprecisão”.
Enquanto uns afirmam ser o Movimento Sem Terra (MST) uma organização paramilitar terrorista; e outros defendem o soviete exibindo algumas migalhas de seus bons serviços prestados à sociedade, alheio, torno à leitura de Alexander Soljenítsin para rememorar os fatos registrados pelo escritor russo acerca dos kulaks — fazendeiros que, sob o regime de Stálin, tiveram suas propriedades “socializadas” pelo governo, com a produção confiscada, sendo ainda enviados ao desterro na Sibéria, quando não instados a cavar as próprias covas. E não contente, o escritor vai além e, fazendo da pena bisturi, denuncia a regra que era desovar corpos em valas comuns (no chão da terra mesmo), evitando-se assim o desperdício de madeira com caixões. Aliás, segundo Soljenítsin, venturosos eram os nazistas por terem à disposição a “tecnologia” das câmaras de gás; luxo demais para os soviéticos.
E eu, pobre-diabo que sou, aqui com minhas agruras, ando preferindo ladear Platão, desconfiado mesmo de que a tal democracia não seja bem aquela pintura paradisíaca que dela todos costumam fazer. Se não arrisco confiar em quem conta os votos, já não arrisco confiar sequer em quem vota. Afinal, no atual estado de coisas, em meu país noticia-se diuturnamente que um dos candidatos à cadeira presidencial com maior intenção de votos é o mesmo sujeito que, há pouco, teve as culpas por crimes de corrupção reconhecidas por quase uma dúzia de juízes que se debruçaram sobre os mesmos fatos. E mesmo assim, há quem ainda o considere seriamente como o próximo presidente desta nossa República da Bruzundanga: um bandido. Nada de novo, desde Barrabás.
Apenas o artifício do encantamento linguístico em inúmeros níveis de cognição poderia explicar satisfatoriamente um barbarismo de tal quilate. Apenas um abracadabra dos infernos. Estamos todos enfeitiçados. Todos e todas, aliás. Melhor dizendo: todas e todos! (com o perdão da minha falta de cavalheirismo).
Numa teia de devaneios, o fetiche da pobreza servirá eternamente de palco para demagogos que, ainda que comprovadamente canalhas, sabidamente imorais, efetivamente parvos e bestas, entre nós sempre encontrarão plateia cativa.
Rafael A. Teles, setembro de 2022.
Comments