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Rafael Teles

A METAFÍSICA DE NOSSO SUOR

Recordei-me hoje de uma data que no horizonte se avizinha e para mim jamais significou qualquer coisa além de pura indiferença. Muitas são as datas comemorativas, os dias santos, os homenageados, que não passam de reminiscências, não logram furar o torpor existencial em que me encontro na condição de brasileiro praticante. Moralmente, o brasileiro vegeta; existencialmente, anula-se a si mesmo, descola-se de suas raízes de mais pura seiva vital, e atira-se num mar de banalidades anestésicas. E o que vem a ser um “calendário oficial” neste estado de coisas? Uma insignificância, coisa nula. Vasculha-se a folhinha, na melhor das hipóteses, não como quem procura orientar-se no tempo presente em memória do tempo passado, mas à procura desesperada dos próximos dias de folga, de feriados prolongados e de pernas para o ar. Incluo-me na constatação: mea culpa!


Aos que de modo heroico fogem à regra, melhor sorte parece não haver. Mesmo àqueles que livraram-se das escamas nos olhos e, obstinados, decidiram instalar-se verdadeiramente na vida, a folhinha não tardará a revelar-se, ironicamente, também como um sintoma. Por que o 1º de maio é feriado nacional, mas não o é o 13 de maio? É que na marcha da história, uma vez reduzido à condição de escravo, o brasileiro trocou os grilhões por carteiras de trabalho — que constituem senão uma nova forma, sobremodo requintada e democratizada, de cativeiro. O homem, amputado de sua condição ontológica e encerrado no papel de mera engrenagem industrial — ainda que bem lubrificada —, não deixa de ser escravo. Vide os frutos, os resultados dos empreendimentos socialistas mundo afora: 100 milhões de pessoas mortas, pela bala e pela fome. Seria um avanço esse disfarce?


O Dia do Trabalhador é o dia do não-trabalho. Ocasião anual em que as forças políticas internacionais do socialismo limpam-se do sangue derramado pelas revoluções e jogam para a plateia láureas que mais subjugam que lisonjeiam. Deram-nos um feriado, mas jamais fomos neste país ensinados a acreditar na dignidade do trabalho, na importância social de nossos ofícios, na metafísica de nosso suor. Desconsiderada a metafísica, a dignidade da pessoa humana é como um braço amputado, que não se paga com um feriado.


Há entre nós quem jamais tenha notado que, desde o ofício mais humilde até as mais altas cadeiras corporativas, o movimento do esforço humano que produz um cafezinho ou um parecer, é sempre consequência direta da mesma necessidade essencial, da mesma luta por sobrevivência, do mesmo direito de viver. Há em cada saco de lixo recolhido, em cada louça lavada, em cada privada higienizada, a mesma quota de tempo vital, de suor e sangue, que há nos grandes projetos de engenharia, nas mais importantes pesquisas científicas, nas mais impactantes decisões corporativas. Há em todo ofício, em todo empreendimento, o tempo de alguém, que foi dedicado a outrem e que jamais tornará ao status quo ante bellum. O salário é a paga inócua pela vida que se esvai e escorre pelos dedos, pelo tempo doado que poderia ter sido qualquer outra coisa, mas não foi. Não se restitui com moeda corrente o que não tem preço. No máximo, ameniza-se, convenciona-se, teatraliza-se a dignidade fundamental do trabalho com o auxílio de abstrações e figuras de linguagem de tipo cartesiano como “hora-aula”, “jornada de trabalho”, “horas extras”.


Uma vez vislumbrada — ainda que ao longe e com binóculos embaçados — toda a extensão da dignidade do trabalho humano, toda a envergadura metafísica de nosso suor, não lhes parece também a vós outros ser de um ridículo inenarrável tentar apagar e compensar, de modo assim deveras republicano (seja lá que tolice queira dizer o nauseabundo clichê), as máculas da escravidão com uma carteira de trabalho? Com uma data que mais segrega do que agrega, já que essencialmente inspirada em mera luta de classes? Com um feriado inútil estampado no calendário da firma, que nos desincentiva as relações de trabalho para maior proveito da estrita relação de emprego, e faz passar por lunático aquele que ousar sequer cogitar reconhecer a maternidade como o maior e mais digno de todos os ofícios, na medida em que ainda não foi possível exigir do bebê que faça as devidas anotações de estilo na carteira de trabalho de sua genitora?


Enfim, talvez seja ingenuidade esperar da sociedade moderna, num mundo de telas e robôs, o reconhecimento da metafísica do suor. Aprendi, com Gustavo Corção, que as antigas corporações de ofício do Medievo já provaram ser isto possível, na medida em que operavam — na falta de um termo mais adequado — como um embrião daquilo que hoje chamamos sindicatos, que todavia não se limitavam à reivindicação de direitos, não medindo esforços para formar e capacitar não o mero trabalhador in abstracto, mas o homem integral — seres humanos completos, que através de seus ofícios glorificavam a Deus, serviam à comunidade e dignificavam as próprias vidas. Logo, permito-me apegar a um frêmito de esperança, antes de tornar a lembrar, com melancolia, que a chamada revolução industrial aniquilou de tal modo a metafísica das relações de trabalho, que os nossos sindicatos de hoje em dia dificilmente atendem ao telefone após às 13h. E aqui, creiam: falo por experiencia própria.


As antigas catedrais góticas ainda estão de pé, altivas, dando testemunho da metafísica, assim como o espírito humano, que se emborca, e até se quebra!, mas sempre a contragosto.


Rafael A. Teles, abril de 2023.

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