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INCENDIÁRIO
ENSAIOS SOBRE O FIM DO MUNDO
E FIGURAS DE LINGUAGEM DO ALÉM

Atualizado: 21 de nov. de 2022

Inevitavelmente, aí vai um daqueles textos que não são textos, mas repelentes — muito úteis de tempos em tempos. Falemos, brevemente, das espinhosas eleições presidenciais que se dão no ano corrente:


Se é que valerá para alguma coisa, meu cândido voto será dado, desta vez, menos por acreditar no atual arranjo institucional republicano do Estado brasileiro, ou na beleza dos mitos da democracia e do sufrágio universal — mais ou menos como tem sido desde que me entendi como um homem adulto —, do que por uma espécie de revolta e compaixão pelos muitos venezuelanos com quem tenho esbarrado pelas esquinas e sinaleiros em minha cidade: pais e mães de família, carregando crianças de colo, esmolando alguns trocados numa terra que não é a deles, errantes num lugar de língua estranha desde que sua pátria foi “transfigurada” num narcoestado e dominada por uma ideologia vermelha assassina travestida de amor pelos pobres e minorias.


Mente, sem tempo de corar as bochechas, quem quer que diga que hoje, por aqui, no coração do cerrado goiano, não seja comum avistar venezuelanos vagueando em tais condições pelas ruas.


Já meus compatriotas não merecem de minha parte, de modo amplo, geral e irrestrito, este mesmo sentimento que aqui reservo para os venezuelanos. Causa-me espécie saber que há entre nós, em 2022, tanta gente que não somente flerta, mas anseia e atua deliberadamente para que as mesmas ideias assassinas também aqui façam morada. Ideias que não vitimaram somente a Venezuela em tempos recentes, mas que já enterraram aproximadamente 100 milhões de mortos mundo afora ao longo do séc. XX, seja pela bala, seja pela fome fabricada.


Compreendo a ingenuidade e a ignorância, sobretudo de pessoas mais próximas a mim. Compreendo que nem todos consigam conceber a obviedade de que o mal dificilmente se apresenta como mal. O erro está, em parte, justificado pela ignorância. “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem”.


E se não posso anuir com a relativização do roubo, com a legitimação do roubo — que é exatamente o que se pretende numa campanha presidencial de um bandido sociopata sentenciado por uma quase dúzia de magistrados concursados —, quanto mais direi em relação ao totalitarismo tirânico que motivou o roubo em comento para financiar narcoditaduras na América Latina com dinheiro público brasileiro. Se isto não nos causa espécie, já não temos virtude alguma para enfrentar a barbárie que se avizinha.


Se meus compatriotas relativizam o roubo, cedo ou tarde, serei eu mesmo por eles roubado, fatalmente, ainda que sob o pretexto de boas intenções. Entre o socialismo e os dez mandamentos, fico com os últimos — fundações da civilização humana, imperfeita, é certo, mas que há milênios se esforça para preferir a ordem ao caos. O socialismo, ateu e assassino, jamais terá o meu consentimento, ainda que pintado de Mickey Mouse. Mãos sujas de sangue nunca estarão integralmente limpas.


Questões estas, muito anteriores e fundamentais do que simplesmente poder escolher quem será o próximo Presidente da República, crendo piamente que a política salvará o mundo. Não irá. Neste vórtex comportamental que imanentiza e projeta na política todas as preocupações superiores da vida, a política mesma torna-se precisamente o problema; não a solução. Dela, passamos a ter de nos defendermos, sobretudo à medida em que os pontos de referência se perdem, confundem-se e sucumbem às banalidades do nosso tempo. Ao menos para que, no próximo verão, nossas mulheres e filhas não sejam obrigadas a dividir o banheiro com marmanjos, sob o pretexto de luta contra o preconceito.


Parece-me obvio que o atual Presidente da República tenha lá seus lapsos de educação doméstica. Mas também noto, com certo pesar, como há entre nós tanta gente confundindo conservadorismo com falta de educação — ou com algum tipo de puritanismo ou moralismo, ao ponto de julgar-se no direito de exigir que o fruto sagrado do conservadorismo brasileiro, na terra do Chacrinha e de Dercy Gonçalves, seja um Sir Roger Scruton tupinambá de gravatas-borboleta, um pulôver cósmico de luvas brancas; e não um conservador tão perfeito que encarne até os defeitos do conservadorismo brasileiro. E é assim que, da direita à esquerda, não faltam objeções daqueles que, com o sobrolho levantado, dedo em riste e indefectível mãozinha na cintura, logo digam: “— Ah, mas ele não é um dos nossos!”.


Mas vejam: eu tomaria muito cuidado quando esta falta de educação é exposta, em uníssono, por todo um aparelho, por todo um falatório de comunicações que não se incomoda tanto assim com a propagação explícita do socialismo ateu que relativiza o crime, o roubo e o assassinato — já levado a cabo no âmbito da política internacional, já velho e experimentado em desgraças por onde passou. Tais ideias corrompidas não atravessam a barreira dos dentes do Presidente da República, mas seduzem o imaginário de tanta gente que o odeia. “— Mas qual é o seu problema com o ateísmo?”, talvez interpelem-me os hidrófobos. Explico: o meu problema é estar com Dostoiévski: se Deus não existe, tudo é permitido.


E noto nisto um sempre constante flerte com a morte, mas uma morte polida, de máscara e álcool-gel, tão “respeitosa” pela vida quanto a raposa que se elege para presidir o galinheiro: a presença de um vampiro que baba por sangue e poder, gabando-se em “obséquios” muitos antes de degolar a vítima.


E por manter as mãos sempre limpas antes de disparar o fuzil. Ou por vangloriar-se de nunca mijar na tampa do vaso enquanto milhões seguem sem saneamento básico pleno. Por assumir sem cerimônias (e sem palavrões) que o roubo não é tão ruim assim, desde que se distribuam migalhas às vítimas que serão eternamente gratas pelo favor das migalhas repartidas! Por não atentar jamais contra a etiqueta ao chupar o fígado e as tripas do cidadão comum, desgraçando-lhe a alma sem nunca ferir-lhe os sentimentos com palavras malcriadas que atentam contra a liturgia dos cargos republicanos. Hannibal Lecter, politicamente correto, fino e inumano. Um espectro maligno no imaginário corrompido.


Se o Brasil fosse mesmo um país sério, não seria sequer cogitada a hipótese de um bandido condenado em todas as instâncias do Poder Judiciário concorrer livremente com a maior cara-de-pau ao cargo de chefe do Poder Executivo. Um escárnio, laureado por todo este mesmo aparato da comunicação de massas que lobotomiza e faz gente desavisada dobrar os joelhos diante de Hannibal Lecter, o espectro, o consenso puritaníssimo, a máquina de moer gente que quer, como num estupro, mudar o mundo contra a vontade do mundo, pelo “bem” do próprio mundo. Há láureas que mais denunciam contra do que em favor do laureado.


Rafael A. Teles, setembro de 2022.

Atualizado: 22 de nov. de 2022

Ao que me parece, à sociedade contemporânea é devido o mérito de ter simplificado sobremaneira a resolução teórica da grande maioria dos dramas humanos. Teórica, eu disse. E mais: arrisco ainda dizer que, especificamente no que diz respeito aos últimos cem anos (refiro-me a expediente que desde então opera num crescendo que chega até os dias atuais), basta um artifício de linguagem, quando bem arquitetado — quase mágico, quimérico — , para fazer-nos crer piamente no que até então seria absolutamente inconcebível. E altera-se a natureza das coisas. Inverte-se o ônus da prova. Revoga-se a realidade.

 

Falo, portanto, da destruição da linguagem consagrada em norma culta, como já apontou Eric Voegelin, levada a cabo através de inúmeras operações simultâneas muito bem premeditadas por bem-pensantes e engenheiros sociais, como uma espécie de expediente de encantamento. Não é por mero acaso que o sistema educacional inteiro (sobretudo as universidades) passou a servir como uma grande oficina de ciclopes onde, pela manipulação de anexins políticos de quinta categoria, se forjam os temerosos raios gama capazes de aniquilar deuses e mortais — e também os escudos capazes de proteger as traficâncias do pensamento político que toma de assalto a realidade inteira e subverte a sociedade à força, como num estupro rumo a um mundo melhor. Na escola, crianças de treze anos já se debruçam, obstinadas, sobre temas de reforma agrária em aulas de geografia, não sabendo localizar o rio São Francisco no mapa, não sabendo distinguir entre caatinga e cerrado, desprovidas de qualquer noção basilar de direito de propriedade, senão enviesada. Indefesas, não logram sair imunes, por si mesmas, de uma teia de devaneios.

 

Isto talvez explique como, de repente, gente de boa criação se vê convencida de que basta cravar um S de “social” em qualquer ideia (cuja origem, via de regra, é pela esmagadora maioria desconhecida), para justificá-la instantaneamente, legitimando assim pautas políticas absurdas, antinaturais ou mesmo criminosas. E a transfiguração de uma ideia enlouquecida em fato consumado estará sempre a uma eleição presidencial de distância. Eleições. Nas palavras do imortal Euclides da Cunha, sobre o fetiche, sobre o clichê, das eleições: “eufemismo que é entre nós o mais vivo traço das ousadias de linguagem” quando “sobrevém a quadra eleitoral, dos conquistadores de urnas” que “transformam a fantasia do sufrágio universal na clava de Hércules da nossa dignidade".

 

E a mágica acontecerá, ó reacionários incrédulos e mentecaptos! Basta garantir-se, pela força da burocracia estatal embalada em propaganda jornalística, a exasperação da ideia sobre a realidade.

 

Pleno, o homem engravidará; e a mulher, empoderada, será o tirano patriarca mais viril que jamais houve. De ofício, estará extirpado do coração humano todo o ódio. Aqueles que não são bem-vindos neste mundo, vetados por lei, nele sequer nascerão — e logo tornarão ao não-ser em caso de acidentes de nascimento. O mal tornará em bem e o bem tornará em mal. Todo jovem sagrar-se-á doutor nalguma ciência de ponta, gratuitamente, através das bolsas governamentais — nenhum jovem a menos. As raças todas diluir-se-ão num capuccino uniforme em nome da diversidade humana. Ser diverso é ser igual e ser igual é ser diverso, tanto faz. A cadeia alimentar, ressignificada, será prisão perpétua para predadores. As muitas injustiças, de plano, cessarão. A pobreza estará para sempre extinta. Seremos enfim, todos iguais, estirados no leito de Procusto.


Mas voltemos sem delongas ao que eu estava dizendo. Ausente o carimbo burocrático do S de “social”, a Justiça não é justa, mas instrumento de opressão de gente pobre. Só a Justiça Social é verdadeira — mais Trasímaco; menos Sócrates. Faltante a chancela cartorária do S de “social”, a democracia não é democrática, e não passa de outro instrumento de opressão de gente pobre. E assim seguimos, ad infinitum. Às vésperas da Revolução de Outubro, Lenin já concebia, em O Estado e a Revolução, que só o comunismo poderia entregar à sociedade humana a verdadeira democracia, puríssima, alva mais que a neve. Aqui a palavra é a mesma (democracia), contudo, na boca de Lenin, torna-se mágica. O comunismo é a ponte que se estende sobre um rio de sangue, e devemos atravessá-la numa chuva de balas, ainda que ninguém logre chegar vivo do outro lado.

 

Neste estado de coisas, não é por acaso que, no calor das discussões de boteco, qualquer tentativa de entendimento mútuo por parte de indivíduos que sustentam posições antagônicas acabe, geralmente, por perder o objeto, restando inócua, improdutiva, haja vista que os símbolos da linguagem foram manipulados para fins utilitários. Em um de seus mais notáveis poemas, T.S. Elliot nos diz: “As palavras deformam-se, estalam e quebram-se por vezes, sob o fardo, sob a tensão, escorregam, deslizam, perecem, definham com imprecisão”.

 

Enquanto uns afirmam ser o Movimento Sem Terra (MST) uma organização paramilitar terrorista; e outros defendem o soviete exibindo algumas migalhas de seus bons serviços prestados à sociedade, alheio, torno à leitura de Alexander Soljenítsin para rememorar os fatos registrados pelo escritor russo acerca dos kulaks — fazendeiros que, sob o regime de Stálin, tiveram suas propriedades “socializadas” pelo governo, com a produção confiscada, sendo ainda enviados ao desterro na Sibéria, quando não instados a cavar as próprias covas. E não contente, o escritor vai além e, fazendo da pena bisturi, denuncia a regra que era desovar corpos em valas comuns (no chão da terra mesmo), evitando-se assim o desperdício de madeira com caixões. Aliás, segundo Soljenítsin, venturosos eram os nazistas por terem à disposição a “tecnologia” das câmaras de gás; luxo demais para os soviéticos.

 

E eu, pobre-diabo que sou, aqui com minhas agruras, ando preferindo ladear Platão, desconfiado mesmo de que a tal democracia não seja bem aquela pintura paradisíaca que dela todos costumam fazer. Se não arrisco confiar em quem conta os votos, já não arrisco confiar sequer em quem vota. Afinal, no atual estado de coisas, em meu país noticia-se diuturnamente que um dos candidatos à cadeira presidencial com maior intenção de votos é o mesmo sujeito que, há pouco, teve as culpas por crimes de corrupção reconhecidas por quase uma dúzia de juízes que se debruçaram sobre os mesmos fatos. E mesmo assim, há quem ainda o considere seriamente como o próximo presidente desta nossa República da Bruzundanga: um bandido. Nada de novo, desde Barrabás.


Apenas o artifício do encantamento linguístico em inúmeros níveis de cognição poderia explicar satisfatoriamente um barbarismo de tal quilate. Apenas um abracadabra dos infernos. Estamos todos enfeitiçados. Todos e todas, aliás. Melhor dizendo: todas e todos! (com o perdão da minha falta de cavalheirismo).

 

Numa teia de devaneios, o fetiche da pobreza servirá eternamente de palco para demagogos que, ainda que comprovadamente canalhas, sabidamente imorais, efetivamente parvos e bestas, entre nós sempre encontrarão plateia cativa.

 

Rafael A. Teles, setembro de 2022.

Atualizado: 31 de ago. de 2023

Chega setembro e uma das poucas certezas que tenho nesta minha porca vida é a seguinte: para nós goianienses dos quatro costados, setembro não é o nome que se dá meramente a um dos muitos meses do ano, mas a uma catástrofe cósmica, martírio regionalmente universal. No Goiás, setembro inaugura o grande império babilônico do sangue seco no nariz, do catarro vitrificado na porcelana da pia, do pigarro hercúleo, do descongestionante nasal impotente, do calcanhar rachado de Aquiles e Odisseu, gregos e troianos, da pele que inflama em coceiras e do beiço que explode como um campo minado. É a apoteose da insalubridade solar, do ardido ar vesperal, do fumo que arde nos olhos e faz colar no fundo da garganta as mucosas do palato mole, deixando um acre sabor na boca. É assim todos os anos. Aí de nós!

 

Se agosto é a antessala do Inferno, setembro é o próprio Lago de Fogo e Enxofre. É a piscina do Satanás, o pula-pula do Cramunhão, a tigela pirotécnica do bandeirante Anhanguera, aquele diabo velho que, ao que tudo indica, deve ter passado por aqui quando era setembro. Só pode! — lamento em voz rouca. Pois é quando, dado o ciclo anual incontornável fixado em dias pelo Criador, uma neblina de vidro gasoso e fedorento arqueia-se, inadvertidamente, como um véu marciano sobre a terra, apagando da memória do homem a imagem bela do firmamento de zênite azul que um dia lhe coloriu a existência com cores vivas de pura alegria. É setembro, afinal. E entristece-se, lamenta-se em muxoxos mil o transeunte autóctone enquanto a baba seca prega-se-lhe ao canto da boca. Arqueia-se esquálido o homem neste formigueiro do cerrado, e não sabe o porquê. Deve ter jogado pedras nas Cruz.


Encastelado em burguesas colmeias de pedra, do alto do nono andar, o comedor de pequi e pamonhas rasga as próprias vestes, limpa fezes e cinzas e disfarça com água sanitária o fedor do bafo troposférico. Chega, enfim, um dos poucos momentos em que, exausto de si mesmo, odiando-se completamente, não se aguentando mais, o pobre-diabo goianiense considera-se venturoso por não poder medir com os próprios olhos a amplidão do horizonte já deveras tumultuado por tantas sentinelas de pedra que erguem-se-lhe por todos os lados como filhotes da Torre de Babel, tapando-lhe a visão lúgubre de um mundo plúmbeo.


Lá embaixo, aos que no olho do furacão desafiam a sorte para em troca receberem sua quota da ração quotidiana de dor, no vórtice da feira popular dos que se matam para viver ou vivem para se matar, no curso estático de um mês que não tem fim, concreto e fios negros de alta-tensão estender-se-ão eternamente sobre suas cabeças, como as teias venenosas de um aracnídeo-demônio que só em setembro sai do covil para alimentar-se de sangue seco, pigarro e pus. E como num frêmito, a pele frita no mormaço do asfalto, assa no estofo metálico do “eixão”, derrete em caldo azedo que das tripas escorre até a chinela, nos arredores da Rua 44 ou da Praça da Bíblia.


Setembro passará! — alguém me diz, traficando nacos de esperança que não quero comprar. Sete pragas passarão. Setecentos graus celsius. Se me lembro bem, quem pinta o sete é o Cramunhão! Sete de setembro sem memória. Viva setembro, meu irmão! Setembro é isto: um agiota que vem cobrar seus devedores até receber o último centavo, na marra, mediante expedientes escusos. Mas o goianiense não foge à luta, não olvida o credor mafiosíssimo e não se deixa esmorecer. E paga a sua dívida, paga certinho, paga tudo, até o último centavo, até a última gota salobra de suor. Até o ano que vem.


Ah, como eu odeio setembro!


Rafael A. Teles.

Goiânia, 5 de setembro de 2022.

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