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INCENDIÁRIO
ENSAIOS SOBRE O FIM DO MUNDO
E FIGURAS DE LINGUAGEM DO ALÉM

Malgrado a mais obstinada e elementar estupidez que insiste em manter-me em eterno cativeiro, se hoje me fosse dado elencar, a título de indicação a quem possa interessar, dois livros que fizeram de mim alguém um pouco menos bicho e um tanto mais humano, O Arquipélago Gulag de Aleksandr Soljenitsin e Lições de Abismo de Gustavo Corção certamente comporiam, com a inegável solenidade de um diálogo inevitável, tal singelo rol. Parece pouco, mas é muito. Aqui, o qualitativo anula o quantitativo. Acredito realmente que, através da leitura, é possível desasnar o homem, restaurar-lhe a condição humana. Aprendi, como um burro de carga já experiente, que nossa humanidade particular não nos é dada de graça, de mãos beijadas, mas adquirida por esforço não raro incalculável, hercúleo – esforço civilizatório. E neste sentido, pego-me mesmo por aqui, tendencioso a crer na força conjunta, na verve metafísica, de apenas duas obras literárias que, pelo peso e qualidade do material humano nelas depositado, oferecem um arcabouço de lições e experiências para uma vida toda. Se bem lidos, civilizam o leitor.


Ao individuo em particular cabe conquistar a própria humanidade, num empreendimento que não pode ser terceirizado. E como se não bastasse, tal esforço não se limita a simplesmente entulhar matéria orgânica dentro da própria cabeça – como quem constrói um prédio ou uma fortaleza entregando-os à própria sorte. Não basta o acúmulo de informações, o decoreba de preceitos e trejeitos, a etiqueta esvaziada de significado. Faz-se mister dar sentido moral a tudo isso, que é justamente o que nos difere de um papagaio que repete frases decoradas sem conhecer-lhes o sentido. É preciso manter de pé o que foi erigido, defender do barbarismo existencial as glebas da consciência que foram desbravadas e conquistadas a preço de sangue. Nelson Rodrigues já disse, certa vez, que o homem é o único animal que consegue a façanha de desumanizar-se. Um tigre jamais deixa de ser tigre, mas o homem...


Tomar de empréstimo as experiências alheias e vivenciá-las em imaginação, como se fossem nossas, observar a problemática do mal e do desengano a partir do ponto de vista privilegiado de quem conseguiu superar, vencer e substituir o mal e o desengano pelo bem e pela esperança, eis aí um ato humanitário, civilizacional. Eis o que a boa literatura tem a oferecer. Eis o que Corção e Soljenítsin entregam ao leitor que sinceramente os procura.


Preciso falar brevemente sobre.


O Arquipélago Gulag foi escrito num contexto de total desumanização de seu autor. Trata-se o livro de uma “investigação literária” levada a cabo por Aleksandr Soljenítsin durante os anos em que foi feito cativo no gulag soviético sob a ditadura de Stalin. A obra traz inúmeras descrições de fatos ocorridos. O autor não inventa, não aumenta; apenas narra o que vê e medita sobre o que vive. É difícil acreditar em certas histórias e lendas que povoam o imaginário, a memória coletiva de um povo. Apesar de presentes em forma de símbolos, tais histórias sempre se mantêm distantes. E nós, alheios a elas, indiferentes. Por outro lado, a narração de Soljenítsin acerca dos horrores do gulag, dada em primeira pessoa, é impossível de ser ignorada. Não há como tapar os ouvidos para o testemunho de quem presenciou outros seres humanos sendo obrigados a cavarem as próprias covas. Não há como fechar os olhos diante da banalização do mal quando se presencia, num único dia, a morte de inúmeras pessoas que não suportaram a sobrecarga de trabalhos forçados e a desnutrição, sendo enterradas em valas comuns, aos montes, jogadas como lixo entulhado, sob a justificativa de que a madeira disponível não poderia ser desperdiçada com a produção de caixões. Simplesmente não dá para deixar de comover-se pelo sofrido sarcasmo deste autor/narrador que, comparando os regimes nazista e stalinista, nos conta que por meras razões econômicas as câmaras de gás eram um luxo impraticável no gulag soviético. Sortudos eram os nazistas por poderem gozar de tão macabra tecnologia em matéria de aniquilação de indivíduos indesejados.


Mas para além do passeio pelo mal em toda a sua expressão real, o Arquipélago Gulag faz o caminho de Dante na Comédia, e leva-nos do inferno ao céu, provando que é possível não deixar-se contaminar pelo mal quando tudo em volta se corrompe. Um dos trechos memoráveis, no meu sentir, é aquele em que Soljenítsin reflete sobre os motivos que levam o homem a tornar-se o carrasco de seus semelhantes. E conclui, com uma espécie de compaixão pelos seus algozes, que ele mesmo, em outras circunstâncias, poderia estar no lugar daqueles homens que resolveram colocar-se a serviço de ideias despóticas, impondo, pela força do fuzil, a desumanização alheia. E eis aqui uma das mais belas imagens já registradas em palavras: há no coração de todos os homens, uma linha móvel, que separa as proporções sempre e inevitavelmente presentes de bem e de mal. Em outras palavras: a todos é dado um certo quinhão do amargo e do doce. E o homem mais santo também guarda no coração uma pitada de maldade, enquanto o mais vil, por mais vil que seja, também carrega dentro de sim um naco de bondade. Estamos aqui, portanto, diante de uma conclusão pessoal de Soljenítsin após ser exposto à experiência do absurdo, ao extremo, transcendendo, nada obstante, o mal que se abatera sobre ele, sobre seu povo e sua pátria.


Gustavo Corção, por sua vez, não faz diferente, não faz por menos, e à sua maneira, também nos mostra que é possível transcender nossas misérias, torná-las em bem, fazer delas verter mel no nascedouro mesmo do fel. Lições de Abismo – único romance escrito por Corção – narra a história de um homem desenganado em sua saúde, com um casamento arruinado e uma projeto de família que fracassou completamente, esfarelando-se em lembranças que nem chegam a ser saudade, mas remorso. Estamos agora diante de um personagem que sabe que irá morrer em breve, e que pode, a partir da perspectiva da morte, “a única certeza que anda ao contrário das outras”, tentar encontrar algum sentido em sua desordem interior. Corção leva-nos, a seu modo, também pelo caminho de Dante na Comédia, até que seu personagem encontre o “repouso verdadeiro”, mas não antes de ensinar-nos a olhar para fora, para o outro, para o derredor, para outras tantas realidades ignoradas além da nossa própria – o que nos ensina que não somos o centro do universo. Somos devedores da existência; jamais credores.


Assim como Soljenítsin, nosso personagem de Lições de Abismo reflete profundamente a existência. A seu modo, discorre sobre o coletivismo como a “teoria do ajuntamento sem unidade” dos homens que perderam o segredo das próprias almas, e que ajuntam-se no tépido aconchego do curral após cansarem-se de um longo processo anterior: um processo de atomização que, em sentido oposto, revelou-lhes precisamente o segredo de suas almas, com o qual não poderiam lidar. Desta forma, vai-se de um extremo a outro, como num pêndulo. “A história do homem é uma dança em compasso binário”. “Qual dos dois será pior? O egoísmo que se isola ou o egoísmo que se congrega? É difícil decidir. Será pior aquele de que o mundo se cansou; será melhor aquele de cujos incômodos o mundo se esqueceu.”


Soljenítsin passa pelo mesmo processo, como quem aprende que o sofrimento não anula a vida, e o relata à sua maneira, com sua linguagem, com suas imagens, e sobretudo com seu testemunho. O pêndulo dos erros, de Corção, é a linha móvel que perpassa o coração dos homens, conforme desenhada pela pena proibida do escritor russo. Ambos nos levam à experiência de conversão, de epifania com o Divino, de libertação do nosso olhar para que possamos enxergar o humano que há no outro, fora de nós, para além de nós.


Legam-nos ambos a certeza de que a vida transcende o mal, e que isto basta para que ela faça sentido.


Viva Corção!

Viva Soljenítsin!


Rafael A. Teles, 22 de dezembro de 2022.

Morro do Livramento.

Encontro-me agora diante de ingrato empreendimento. A dura tarefa que é, sob o escrutínio atento de um professor vocacionado e auspícios de meus pares colegas, correlacionar brevemente a noção do sentimento de angústia conforme nos é apresentada por Graciliano Ramos e Fiódor Dostoiévski, nas obras Angústia e Crime e Castigo, respectivamente.


Quem sabe minha humilde tarefa resuma-se aqui, menos em cravar respostas satisfatórias acerca de um tema sobremodo complexo, do que formular perguntas que nos auxiliem (a mim mesmo, sobretudo) a melhor vislumbrar a amplitude do fenômeno da angústia, o tamanho de sua problemática. Eis o que me cabe. Menos é mais, sobretudo em matéria de honestidade intelectual. Ou seja: mais vale saber administrar a dúvida honesta e consciente do que a exibição tola e vazia de falsas certezas, fundadas na palpitaria universal.


Pois bem. Eu ia falando do velho Graça e de Dostoiévski. Com efeito, ao cotejar os romances que são aqui o objeto de nosso estudo, a questão do homicídio salta-nos aos olhos imediatamente. Mas não só a ideia do homicídio tomado em si mesmo, como fato isolado, mas também as razões pelas quais os homicidas sentiram na pele, literalmente, os efeitos de um sentimento que os consumia ao ponto de fazer desaguar de suas almas doentes, torrentes de ódio insuportável sobre indivíduos tidos por intelectualmente inferiores, antagonizando-os ferozmente numa resolução de vida ou morte, no ato de matar.


Em Graciliano, Angústia é o nome dado ao romance, por ser este sentimento (ou estado de alma, caso queiram) o eixo central da narrativa, esculpida em monólogo interior. O narrador-personagem, Luís da Silva, rememora os eventos que o levaram a cometer um assassinato, a partir de suas percepções e pontos de vista, envenenados pelo sentimento angustioso. Em sua chave etimológica, a palavra angústia remete a estreiteza, limite, restrição, ansiedade ou aflição intensa. Em sua origem latina, angustiae também flerta com a ideia de desfiladeiro, estreito, ou seja, o sentido de brevidade, de dificuldades, de situação difícil. Encontramos, ainda, relações da palavra com carestia e escassez. E tudo isto pode ser observado em Luís da Silva. A aflição que tem origem remota na alma, se materializa no corpo e, no ponto crítico, quando sopita, externaliza-se num ato, numa ação, num homicídio.


No romance de nosso grande alagoano, no meu sentir, a confissão da reação física a este sentimento de certo modo indiscernido nos é dada logo no primeiro parágrafo do texto. Luís da Silva inicia a sua confissão dizendo não estar ainda completamente restabelecido de uma espécie de doença. Sombras de visões passadas que lhe produziam calafrios. E não só isto. Pela pena de Graciliano, Luís da Silva logo diz: “Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram. As mãos já não são minhas: são mãos de velho, fracas e inúteis. As escoriações das palmas cicatrizaram”. A obsessão de Luís da Silva explode, portanto, num misto de raiva e tristeza que arrebenta no corpo em manifestações multiformes. A confissão acerca da origem remota daquela aflição é, por sua vez, mais sutil, mas está igualmente lá, passando pelo trecho da narrativa em que o personagem descreve a vida insignificante que leva, a rotina ingrata que sempre obedeceu, e que adquire insuportável contraste a partir do momento em que conhece Julião Tavares, seu antagonista – o burguês de vida fácil que representa tudo o que Luís da Silva mais desprezava, mas ao mesmo tempo invejava.


É que Luís da Silva sente-se intelectualmente superior ao meio em que está fatalmente inserido, contudo, fortemente injustiçado, preso a uma vida medíocre. “Considerava-me um valor, valor miúdo, uma espécie de níquel social, mas enfim valor”. É este sentimento de inadequação que, paulatinamente, o envenena, sobretudo a partir do momento em que se antagoniza a Julião Tavares, personagem que é como a última gota de fel derramada na boca de Luís da Silva, e que viria a tornar-se, assim, o fetiche de um ato libertador, morbidamente libertador, criminosamente libertador. E de quê, precisamente, Luís da Silva necessitava desesperadamente libertar-se? De Julião Tavares? Não. De sua angústia.


Da narração de toda a cena do assassinato, Graciliano extrai de seu personagem, de modo brilhante, o misto de dores e alívios que rasgam-lhe a alma durante o ato de matar. Desde o sentimento de inferioridade, do “homenzinho da repartição” que “só se podia mexer pela vontade dos outros”, até a certeza da obsessão que, a partir daquele momento, iria desaparecer, deixando-lhe um gosto de deslumbramento e uma enorme alegria. Alívio, enfim.


Em Dostoiévski, por outro lado, dado o caráter psicológico da trama, pela voz de um narrador onisciente, há muito mais elementos de tal sorte, espalhados por todo o texto, sobretudo naquilo que, a meu ver, caracteriza-se como efetiva descrição do iter crimnis, conforme nos é ensinado nas cátedras do Direito, ou seja, todo o caminho preparatório, quer no campo da cogitação mental, quer no campo prático das ações, para a consumação do ato criminoso. E mais: antes e depois dos assassinatos cometidos por Raskolnikov, o jovem personagem de Dostoiévski delira, como que num torpor acordado, também em meio a calafrios e sonhos febris, pelo que também sofre na pele o desconforto de origem espiritual, que teve origem na alma. Em certo trecho, é dito que Raskolnikov tinha semblante extremamente pálido, e que expressava um sofrimento excepcional, como se acabasse de ter sido submetido a uma dolorosa cirurgia ou tortura. Dores de cabeça, febre e calafrios também aparecem na narrativa do grande romancista russo para descrever uma espécie de opressão que domina o personagem, ao ponto de Raskolnikov sentir que não tinha mais liberdade espiritual nem força de vontade. Matar uma velha usurária da vizinhança era uma decisão já tomada em definitivo, como a única forma concebida pelo personagem como lenitivo para a obsessão repulsiva que o dominava de corpo e alma.


Não creio que a velha – a vítima –, seria de fato, por si mesma, o grande objeto de ódio e desprezo do personagem, mas o símbolo, a personificação da injustiça que dava causa e alimentava a angústia de Raskolnikov. Assim como Julião Tavares em Graciliano, também em Dostoiévski a velha foi a válvula de escape, o caminho mais curto. Matá-la foi a resposta dada a um estado de alma insuportável. Resposta que poderia ter sido outra, mas não foi. Assim como Luís da Silva em Angústia, o desprezo social de Raskolnikov era, de início, absolutamente difuso, geral, despersonificado. Acerca de seu personagem, assim diz o escritor russo: “Raskolnikov era muito pobre e, de certo modo, assoberbado e intratável, como se ocultasse alguma coisa dentro de si. Havia quem achasse que olhava de cima para todos os companheiros, como se os excedesse, feito crianças, em desenvolvimento, em conhecimentos e convicções, e tomasse os interesses. E convicções deles por algo inferior”.


Temos aqui, portanto, exemplos célebres de angústia motivada por razões intelectuais, a partir da perspectiva de dois personagens profundamente incomodados pela mediocridade de um meio que, injustamente, de algum modo lhes oprimia: Luís da Silva era bom demais para ser humilhado por Julião Tavares – o gordo ruivo, o playboy burguês que lhe roubara a auto-estima e a mulher. Raskolnikov, por sua vez, garoto portador de um futuro brilhante, faria muito maior bem à humanidade caso tivesse à sua disposição o dinheiro da velha usurária – um piolho que apenas acumulava em vão. O que ela faria com aquele dinheiro todo? Absolutamente nada de útil. Dinheiro que poderia tornar aquele jovem sonhador num novo Napoleão, financiando-lhe os estudos e uma carreira brilhante. “Cem, mil bons negócios e iniciativas é que se pode ajeitar e melhorar com o dinheiro da velha”. Raskolnikov, em dado momento, chega a afirmar que a velha usurária, alvo de sua obsessão, não merece viver.


Devidamente comparados ambos os textos – seminais, diga-se de passagem –, sinto-me desde logo inclinado a endossar a ideia de que a angústia, enquanto doença do espírito, em casos extremos, para muito além da esfera do indivíduo angustiado, é também uma preocupação social. É ferida indiscernida, com potencial para tornar-se verdadeira patologia que flerta com o crime, em casos extremos, evidentemente, quer na forma do assassinato, quer na forma do suicídio, tendo doa a quem doer a morte como válvula de escape, como o alívio numa panela de pressão prestes a explodir.


Não ousando catapultar para a sociedade do espetáculo e da sabedoria instantânea respostas vazias ou demasiado simples para realidades complexas, indago se haveria modo outro para melhor descrever a angústia, senão como uma espécie de batalha interior, como num duelo, onde somente um sobrevive. Se com ela subimos ao ringue, ou a destruímos, ou ela nos destrói. Em casos extremos, ou ela mata, ou ela morre. Vence quem durar mais. E neste sentido, vale aqui lembrar, o velho Santiago de Ernest Hemmingway bem sabia o que significava ser derrotado, mas jamais destruído. Ele morreria de fome, derrotado pela carestia material, mas não seria jamais destruído; ao contrário de seu criador que, curiosamente, cometeria suicídio anos após a publicação de O velho e o mar.


A partir de tais leituras, questiono, ainda, se o individuo angustiado teria sempre diante de si a escolha entre o certo e o errado – e sucumbe diante do mal por pura covardia ou por cálculo –, ou se a consciência anuviada e envenenada pela angústia de antemão surrupia-lhe a discricionariedade no que toca ao modo como responde aos seus demônios interiores. Ladeando Albert Camus, para quem a única questão filosófica realmente importante ao homem seria o suicídio, questiono o que faz o monstro crescer ao ponto de matar o hospedeiro, ou mesmo quem quer que encontre pelo caminho.


E reconheço Jakyll e Hyde, em cada um de nós. Que vença o melhor.


Rafael A. Teles, 04 de dezembro de 2022.

Morro do Livramento.

Atualizado: 31 de mai. de 2023

Passei a vida no ermo, situado a meio termo entre a graça e a solidão. Meu mundo é simbólico, poético e retórico. Insofismável. E por isto mesmo, adorável cidadela onde a fé no efêmero não prospera, jamais. Para lá me mudei sem permissão, das autoridades locais, das guardas municipais, das sentinelas gerais que determinam o sim e o não, o herói e o vilão, forma e matéria, pela voz deletéria da Esfinge que engendra enigmas de tempos e eras ao som do cantochão, entoado em ritmo funesto, à medida em que bandeiras brancas, a meio mastro, são tingidas de sangue e de asco, com palavras de ordem e progresso.


— Decifra-me ou devoro-te! (cantochão em sol menor, bem menor). Devoro-te nada! Porra nenhuma! — disse-me a Esfinge, depois de uns dedos de prosa.


— É tudo papo furado, para afastar a multidão! Me paga um café, que na terra do rei Pelé, só para a morte não tem jeitinho não.


Para lá me mudei desde então, acelerei na contramão, do país do futuro.

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Meu mundo é simbólico porque o símbolo é o próprio mundo, condensa e abarca em si a realidade inteira. Matriz de intelecções que faz dos lírios do campo autoridades sacerdotais, lenitivo contra boçais. Mais confiável que o governo, nasceu há dez mil anos atrás, muito antes do contrato social, do Iluminismo radical que, de tanto cortar cabeças, subverteu a ordem estrutural da espiritualidade humana para encerrá-la num curral. O símbolo é um amigo que não trai, um gigante que sempre vai até os primórdios da civilização buscar sentido e significação. Companheiro, bom vizinho e bom conselheiro, xinga o árbitro sem perder a razão, ganha a aposta e não finge que não. O símbolo é a vida como ela é, não quer macular a tua fé, subverter-te a razão.

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E assim concluí sem perdão: é por isto que meu mundo de símbolos é a única coisa real que existe. Fora dele — pois aqui embaixo, onde só venho a trabalho —, tudo finge ser o que não é.


Rafael A. Teles, setembro de 2022.

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