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INCENDIÁRIO
ENSAIOS SOBRE O FIM DO MUNDO
E FIGURAS DE LINGUAGEM DO ALÉM

Lição nº 1 deste dia de águas de março fechando o verão: normalidade, como a própria palavra o diz, vem de norma. Em filosofia moral, norma é a regra do reto agir. E para que possamos dizer que raios é o reto agir, é preciso, antes, valorar a conduta, distinguir o valor dos atos humanos numa escala que parte do mais baixo para o mais elevado, no sentido da perfeição e do bem.


Ou seja, a noção de norma implica, necessariamente, um juízo de valor — de bem ou mal, de certo ou errado. E por sua vez, também é assim com a noção de normalidade. É por isto que a ideia mesma de “norma” indica, hipoteticamente, fazer o que é certo: uma norma nos mostra a conduta-modelo a ser alcançada. Normal é aquilo que está adequado ao reto agir, de acordo com a natureza fundamental do objeto.

Logo, a noção de normalidade não se confunde com aquilo que ocorre com determinada frequência, passível de ser medido, mensurado quantitativamente. Normalidade não é mediania. O fato de registrarmos no Brasil as estatísticas de 70 mil homicídios por ano não faz do crime de homicídio uma conduta normal. Fossem 13 milhões de homicídios anuais, também este não seria um fato normal da vida cotidiana nacional, ainda que comum e banalizado, pelo simples fato de que é errado tirar injustamente a vida de outrem. E é o juízo de valor que nos diz isto. O homicídio não se harmoniza com a natureza humana. É um erro grosseiro, teratológico, afirmar que determinada conduta se normaliza pela repetição.

Gustavo Corção nos conta que o badalado sociólogo Émile Durkheim considerava a criminalidade um fenômeno social absolutamente normal, por ser o crime uma conduta humana igualmente observável em todas as sociedades. Durkheim chegava a dizer que o crime é “necessário” pois seria uma espécie de atestado de saúde pública e parte integrante de qualquer sociedade sadia, já que a sua total eliminação é um empreendimento impossível devido à incorrigível maldade dos homens. Logo, na esteira deste raciocínio, uma sociedade sem crimes não seria uma sociedade normal, desejável. É como se o sociólogo — badalado como um sino indigno — dissesse que uma sociedade sem crimes é uma aberração da natureza.


Ora, da posição de Émile Durkheim para a posição de quem advoga explicitamente a favor da descriminalização de condutas como o aborto, o tráfico de drogas e a pedofilia, é um pulo. Basta um empurrãozinho e o sujeito, o militante, já estará fazendo o L, na certeza de que está tudo bem em roubar um celular para tomar uma cervejinha com os cupinchas no final de semana, e que devemos esvaziar logo os presídios em razão da suposta superpopulação carcerária.


Nada mais óbvio — o óbvio ululante, como dizia Nelson Rodrigues —, se o que é hoje entendido como “normal” já não guarda mais relação alguma com o significado valorativo de "norma", significado este, enfim reduzido a mera descrição de fatos neutros e estatisticamente observáveis. Em suma: se todo mundo faz, tá tudo certo. E isto, graças a uma palavra que teve seu significado mutilado e então subvertido. Eis o estrago que uma única palavra subvertida pode fazer na cabeça dos desavisados. Não é sem razão que o filósofo Olavo de Carvalho afirmava, brilhantemente, que o homem medíocre não acredita no que vê, mas no que aprende a dizer. É chocante ter de pensar em que medida as ideias que se espalham no tecido social governam o mundo, ainda que os indivíduos que nele se aconchegam não tenham a menor consciência de que são fantoches em toda a linha.


Master Of Puppets, who’s pulling the strings?


Rafael A. Teles, março de 2023.

Atualizado: 10 de jan. de 2023

A depredação física do ambiente civilizado — incluído aí o patrimônio púbico, e portanto, alheio — não é, em essência, um problema meramente político. Antes de tudo, é um problema de consciência. Ou melhor: da falta dela.

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Não é fenômeno de ordem política senão pelo repugnante viés da revolução — que corta cabeças como quem quebra ovos para fazer omeletes de sangue e tirar proveito da violência. E por sinal, é justamente nisto em que se fundamentam as correntes marxistas de pensamento político-filosófico. As mesmas que hoje governam este eterno país do futuro e pilotam para o fundo de um abismo a carruagem de fogo morto da democracia. As mesmas que, em diferentes matizes, dominam de lambuja “o quarto poder” — que menos reporta fatos ocorridos do que induz as massas pela manipulação da linguagem.

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Anestesiado por motivos mil, aliviado do fardo da compreensão existencial e histórica do mundo que o cerca para além dele próprio, o diabo do indivíduo pensa que as construções humanas se criam a partir do nada, como que por passe de mágica; e não pelo emprego do trabalho e esforços de um sem-número de pessoas sem os quais nosso pobre-diabo não poderia contar sequer com um chinelo nos pés ou um teto sobre a cabeça.

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Trabalho e esforços alheios que, aqui ressalto, são nada menos que tempo e energia vital, cedidos a nós todos para a necessária materialização utilitária de tudo o que nos cerca e protege. Enfim, a vida, o tempo, o sangue de tanta gente, doados como abrigo em prol do bem comum e em caráter de interdependência.

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Nos dizeres de Aristóteles, sendo o homem animal político — ou seja, que por natureza convive e compartilha —, podemos da afirmação concluir que, alijado de tal consciência existencial que deveria advir justamente da razão, o homem se desumaniza. Torna-se menos homem e mais animal, como um porco ou um cavalo, rebaixado, afinal, a nível inferior a estes, que jamais traem sua natureza ontológica.

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Sem esta compreensão, não temos empatia necessária sequer para tirar o lixo para fora de casa. E o lixeiro, já que remunerado para tal, será tratado, ao fim e ao cabo, igualmente como lixo. E a faxineira, e o garçom, e o pedreiro, o engenheiro, o cozinheiro, o vigia, o policial, o porteiro. Neste estado de consciência anulada, se não temos estofo moral para o mínimo, para o básico da convivência, quanto menos o teremos para o ato de votar e clamar aos céus pela deusa democracia. Quanto menos para exigir o que quer que seja.

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E o que dizer de nossos espaços “civilizados”, nossas cidades, pichadas, imundas, relegadas a absoluta poluição visual, ao esgoto a céu aberto, ao disforme, à estética do feio? Qualquer visita a uma universidade federal já nos revela que neste país a barbárie da coisa pública pichada e vandalizada é entre nós coisa banal, chegando a ser até mesmo romantizada entre tantos que ali arrotam cultura e educação. O patrimônio público e histórico brasileiro jaz no descaso há décadas. Sequer túmulos são preservados. Culturalmente, o Brasil morreu, já é terra arrasada, e não há situação ruim que não possa piorar. Solução política também não há. Política só se faz entre humanos, não entre animais. A anti-pessoa não faz política.


E não deixa de ser curioso, afinal, neste estado desolado de coisas, notar que a comoção atual em torno dos escombros de Brasília só ganha holofotes, com tamanha repercussão, com tamanha verve, porque atinge de jeito o brio de uma elite, dos poderosos, dos iluminados, dos donos da República, que igualmente tomam parte na barbárie na medida em que dela necessitam e tiram proveito para a manutenção do status quo e a justificação de suas posições de poder muito bem remuneradas.


Rafael A. Teles, janeiro de 2023.

Há quarenta anos sigo errante nesta selva selvaggia. Quatro décadas de puro talento e desconcerto. Por vezes talento, por vezes desconcerto.

Mil vezes na vida tive a oportunidade de reagir a este mundo como um mentecapto. E eu era a mera memória reativa de um bicho furtivo e desajustado, de imaginativa ingênua, paupérrima.

Mil vezes. Acachapantes! Não desperdicei nenhuma delas. Ainda hoje ecoam — porém, já com muito maior significação — as palavras de minha mãe, marteladas no fundo de uma gruta: “fazer a leitura do mundo em minha volta”.⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀

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Já como quem se agarra à inocência doce de uma criança, vertendo vômito e confissões agostinianas, por raríssimas vezes tive as chances reais de salvar-me de mim mesmo, conscientemente comprometido com atos sacrificiais de boa-fé — virtudes perceptíveis que não eram mero fruto de emulação. E eu era o verão tardio de um sono umbigocêntrico, tomando de volta, lá do fundo de um buraco lamacento e mais frio que o próprio frio, a alma quebrada e a fé em desuso.

Que me importava amargar os prejuízos de uma biografia disforme, de uma auto-imagem vertiginosa? Aluno relapso que fui, cheguei atrasado na escola da vida. Mas e daí? Agora eu olhava e via, e via e enxergava! E o mundo se espraiava para fora do meu eu — fulgurante, como um campo de verdor infinito. Mas perto de mim, agora eu via, pessoas ao chão, entorpecidas, sonâmbulas, semi-mortas. A sociedade dormia, e a minha solidão era estar acordado.

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Raríssimas vezes. Fugidias! Não desperdicei nenhuma delas.

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E ao final, o que sobrará quando a vida resolver finalmente fechar as portas deste teatro encantatório? O que mais pesa nesta contabilidade paradoxal que não foi feita para fechar senão pelo selo de Deus? Pois é assim que tenho vivido. É só assim que sei viver: em frêmitos sangrentos, num esforço sobre-humano para manter-me acordado, entre o talento e o desconcerto. E há quem saiba viver de outro modo?

Se toda dissonância é uma preparação para a harmonia, agradeço imensamente àqueles que me aturaram até aqui. Deus lhes recompense, pois, a mim o Criador não deve absolutamente nada.

O devedor sou eu.


Rafael A. Teles, 23 de dezembro de 2022.

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