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INCENDIÁRIO
ENSAIOS SOBRE O FIM DO MUNDO
E FIGURAS DE LINGUAGEM DO ALÉM

Atualizado: 8 de dez. de 2023

Que é a verdade, para você? O pecado original cristão, ou o mito do bom selvagem, de Rousseau? Onde estará incrustada a raiz de todo o mal, de toda a corrupção? Quando as tem, a grande massa não sabe de onde vieram as suas ideias, a origem de suas crenças cotidianas. Sequer as distingue. Não faz a menor ideia do impacto político que isto gera.

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Aprendi, com Gustavo Corção, que a maioria de nós raciocina e forma opiniões pelo mero tilintar das palavras, o barulho, o zunzum que elas produzem. Repudiados — como quem chuta com o canto do pé uma barata morta para o canto do quarto —, os significados que as palavras carregam passam ao largo das conversações. Não entra em conta o capital simbólico.

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Nélida Piñon foi a primeira intelectual que a mim apresentou um diagnóstico social deste fenômeno de afasia social, dando a ele um nome. Olavo de Carvalho, também há muito já dizia que o homem medíocre não acredita no que vê com os próprios olhos, mas no que aprende a dizer.

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Eric Voegelin e Karl Krauss também registraram linhas preciosas para dizer-nos que as ideologias destroem a linguagem, incluindo aí a força propulsora do jornalismo moderno, na fabricação de realidades postiças para as quais as pessoas se deslocam como gado, animal de pasto. Uma segunda realidade. Com Graciliano Ramos, aprendi que a “opinião pública” não existe, porque é paga.

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É daí que a mim me parece ser insustentável, hoje, a crença ingênua na eficácia do sufrágio universal, da democracia, dos maravilhosos ideais republicanos (seja lá que diabos isto queira dizer), quando as pessoas, sem saber como votam e sequer no que crêem, votam contra si mesmas, num processo absolutamente controlado de cima para baixo.

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Nas extremidades da esquizofrênica Ágora moderna, os terraplanistas negam aos textos sagrados toda a possibilidade de uma significação mito-poética, encerrando-os in limine numa literalidade canhestra, duvidosa, cheia de buracos.

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Os terracomunistas, no extremo oposto, fazem exatamente igual com seus postulados ideológicos, com a linguagem acadêmica e técnico-científica, com sua língua de pau, que de tão cansativa e pedante, de tanta pompa encantatória, nada produz além de racismo em buracos negros e a rotulação de pessoas como produtos em série industrial.


Gente de carne e de osso, de bile e de pus, de crença e carência, que arfa e reza o Pai Nosso, almaldiçoa e blasfema. Sinais e gestos que no fundo o homem medíocre já não compreende, mas que já cataloga, com essa pressa violenta do seres superficiais. Figuras de linguagem são extirpadas da comunicação humana, agora inacessíveis, indecifráveis, indesejáveis até. Assustam, oprimem, obsedam: vieram do além.

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E o homo deixa de ser sapiens, retorna ao bestial, ao animalesco, às pulsões vulcânicas do baixo-ventre que o governa e tiraniza. Num tabuleiro de palavras vazias, o destino coloca afinal o seu irrefutável tento preto.


Rafael A. Teles, dezembro de 2023.

É tão difícil. É tão raro sustentar qualquer coisa nesta vida, cravar alguma certeza e nela permanecer inabalável. Como se condenados a tatear no escuro, conformamo-nos, no mais das vezes, em colecionar convicções tomadas de empréstimo deste mundo povoado de fraudes e fraquezas, de ciladas e mentiras. As trevas nos fazem crer que somos cegos. E com que facilidade bovina sucumbimos à tentação de ostentar o que não somos! Eis a nossa inafastável condição.


Mas a verdade segue, inobstante, absoluta.

 

Uma vez fisgado pelo encanto da machadiana mosca azul, asas de ouro e granada, ou como Ulisses em alto mar à deriva, sem um mastro para nele amarrar-se contra o canto das sereias da morte, o homem medíocre passa a viver, agora, para sempre atormentado, a um passo de confessar-se uma fraude inconfessável, enclausurado num dilema entre o ser e o dever ser, entre o autoengano macio e uma verdade totalitária, implacável perscrutadora de almas.


E o homem medíocre somos eu e você, todos nós que ostentamos uma exangue máscara de cera no lugar do brio. E macetamos a consciência obtusa onde já não penetra nenhum rumor vindo de fora, como num quarto fechado que abriga um defunto. O putrefato ar vesperal não circula.


O maior ato de coragem é sempre um movimento interior, um mergulho de efeitos pedagógicos no abismo de nós mesmos. O homem, conterrâneo da desgraça, se dissipa como fumaça diante da visão dantesca de um canavial de ilusões cultivadas no porão da alma escassa, de maldades colecionadas num arquivo abissal, que sabe que foram as dele. E olha, e passa, como quem finge não entender.

 

Só há um modo de ser livre: morrer para a morte e morrer para a vida. Tudo passa pelo esforço monumental, quase sobre-humano, de tirar do fundo desse abismo de remorso, vergonha e engano, a coragem para assumirmo-nos responsáveis por nossos pecados, diante do absurdo que é o Deus que não existe (que não precisa existir), porque antes de existir, Ele é. O existir cabe a mim e a você — poetas menores no teatro da existência —, o gênero humano desgraçado, a única criatura que se nega a si mesma, bestializando-se ao menor impulso carnal trazido por maresias de sonho e fantasia, quando a maré baixa dos tempos e eras faz baixar alarmantemente também o nível de todas as coisas que já eram medíocres.

 

É ali mesmo que habita — naquele porão mais escuro de nossa consciência — o monstro silencioso que conosco se confunde numa simbiose fundamental que há de nos acompanhar até o derradeiro suspiro, até o esticar das canelas. Talvez seja essa coragem a única forma possível de liberdade: a coragem para assumirmo-nos responsáveis por nossos pecados, reconhecendo em nós o monstro interior. Talvez seja essa coragem a única maneira pela qual se possa conhecer a verdade, crer de verdade, ser de verdade.

 

Deus sabe o quanto espero ser livre um dia.

 

Rafael A. Teles, novembro de 2023.

O que direi é tudo. Não menos que o necessário. Que do meu peito esquartejado, malgrado este esquálido viver, se encha das minhas razões um diário, sem jamais ter o que dizer para este mundo profanar em frêmitos sangrentos de palavras ditas ao vento, como cusparadas rumo ao nada, ou da serpente o veneno ejaculado. E não hei de roubar o que de valor no silêncio habita, ouro puro em lídima pepita, e preencher o vazio espacial da dor com plástico, vômito e brita, do abismo sideral de minha própria encarnação. As trevas nos fazem crer que somos cegos. O que nos cega é o alarido, a gritaria. Aquieta-te nas trevas, confortável na escuridão. Na noite interior medita. Aduba o solo da tua língua, irmão.


As palavras se movem e vão, colorindo a paisagem, do cume ao chão, demarcando fronteiras, sobrepujando barreiras, conferindo à realidade um nome e significação. Nascem ao som de um milagre, na aurora da angústia, da sinceridade, da viva necessidade, jovens idealistas, puras e anarquistas, em grosso calibre de precisão. Aí de nós!, que aos cavalos damos bom dia e aos jumentos damos de mamar! Inadvertidos, sem apreço e sem raciocínio, falamos demais. A presença delas exigimos demais, a punhos cerrados, numa exasperação brutal da ideia sobre a realidade, até a estrangulação fatal de toda a significação. Somos, no fim, um covil de abusadores.

 

Inoculado o veneno, as palavras se movem em vão, travestidas de medo, bebendo do fel e do fétido sebo, confundindo o sim e o não, pintadas de lodo e cimento, até o completo desuso, complexo, até o fadado momento, da morte, do fim, do fim de uma era que nos fala sem saber o que dizer, ao acre sabor de peçonha espiritual, do ódio instrumental, da propaganda eleitoral, na coreografia disforme daqueles que com a cabeça amam e com o coração raciocinam.


Com T.S. Eliot, aprendi que as palavras estalam, quebram-se, por vezes, sob o fardo. Eis a crua verdade. Nós somos o fardo. Somos  Babel. Quanto mais alto, maior a queda. A morte da palavra é a morte do mundo, enterrado como indigente, sem nome, sem documento, revirado em vala comum, num espetáculo sangrento televisionado. As trevas nos fazem crer que somos cegos. Babel nos faz amar, como mariposas rumo ao fogo, o inebriante sol falsificado. Aquieta-te nas trevas, confortável na escuridão. Na noite interior medita. Aduba o solo da tua língua, irmão, pois só assim verás.


Da escuridão se fez a luz.


Rafael A. Teles, outubro de 2023.

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