Angústias ancestrais que me subjugam, exigem minha eterna impermanência. Quereria eu gritar independência, absorto neste estado de torpor e indecisão? Jamais vi um objeto por inteiro; conheço dele apenas partes, perspectivas. Submeto o meu olhar, evidentemente limitado, ao escrutínio da dúvida, ciente de que a totalidade é um mistério, de que a limitação paralisa e a todos abandona numa encruzilhada de hesitação, seres errantes entre a inércia e a imprudência. E de repente pego-me a invejar os pragmáticos, os grandes sábios do fazer e acontecer, heróis e mestres da instantânea tomada de decisões que se desenrolam em consequências infinitas e que, como um rolo compressor, esmagam vidas inteiras. Invejo também os que afirmam não ter inveja — puros, cátaros, alvos mais que a neve, que descolam a si próprios da condição humana para, sub-repticiamente, negarem o que inegável é: a própria sombra.
Porque na muita sabedoria há muita amargura, já foi dito. E o que aumenta a sua ciência, também aumenta o seu sofrimento, já é sabido. E se sofro de dúvidas e indecisão, se minha angústia é o mapa-múndi da minha ignorância, é que Deus não quis fazer de mim um Hércules inaudito, o além-do-homem de Nietzsche, o vulgo super-homem — aquele sujeitinho petulante, aos dezessete anos já capaz de criar ex nihilo seus próprios valores e viver de acordo com uma visão de mundo tacanha e ensimesmada, que supõe jamais ceder às normas cruéis e convenções opressivas impostas pela sociedade. Sou o que sou, e está tudo bem assim. Apenas eu mesmo. Carrego como uma cruz a minha terrena indecisão: o buraco negro que trago no peito. Necessito que me deem a mão, como São Pedro em titubeios, a afogar-se no Mar da Galileia. Sou o que sou, e está tudo bem assim. Seria a verdade um fardo que poucos ousam carregar?
Certa vez um velho amigo, se é que assim ainda posso chamá-lo, perguntou-me em tom sabidamente irônico se eu ainda acreditava em tudo o que lia. Redargui, explicando-lhe docilmente que ao inverso do que ele ali supunha, quanto mais eu lia, mais duvidava de tudo. A diferença entre nós é que até o meu ceticismo necessitava lastro; enquanto o dele — já que ele nada lia —, era puro flatus vocis. A saber: falsas certezas, de natureza meramente negativa, egressas do mais profundo entrefolho anal.
É para ilustrar a natureza da dúvida que trago aqui essa breve anedota, já que apoiar-se em ilusões travestidas de senso crítico ou disfarçadas de originalidade corajosa, é direito de qualquer idiota. Atribui-se a Ernest Hemingway a ideia de que há grande diferença entre movimento e ação. Se procede ou não atribuir-lhe o dito, não me interessa, mas subscrevo a ideia, já que nem todo alvoroço, nem todo estar ocupado, nem todo fazer e acontecer, significam que estamos fazendo progressos na vida. Talvez estejamos apenas tontos, como baratas. Talvez estejamos apenas convencidos de que confessar fraquezas seja crime, pecado mortal contra o espírito da época, contra o ideal burguês de alta performance, contra as cidades que nunca dormem e que, para manterem-se sempre acesas, sugam do indivíduo até a última gota de sangue.
Rafael A. Teles, julho de 2024.