top of page
INCENDIÁRIO
ENSAIOS SOBRE O FIM DO MUNDO
E FIGURAS DE LINGUAGEM DO ALÉM

Atualizado: 20 de fev. de 2022

A Morte de Ivan Ilitch, aquela curta novela de Liev Tolstói publicada em 1886, deveria ser lida, em verdade, como uma espécie de ultimato. É como se o velho escritor russo, com o dedo indicador em riste e tom solene, de antemão alertasse com voz de trovão: — “Não se engane. É de ti que falo nestas páginas!”.


A morte é certamente um tabu universal. É assunto evitado a todo custo. Realidade varrida para debaixo do tapete num porão escuro de nossas consciências entorpecidas. Temos aqui belo um assunto que, via de regra, só é encarado de frente (quando muito) com um certo ceticismo, como se a nós mesmos jamais dissesse respeito, ou mesmo como quem espia de longe um bicho peçonhento num zoológico, com uma boa margem de segurança, confortavelmente protegido pelas grades da jaula que mantém distante a víbora. Tolstói obviamente conhecia muito bem esse subterfúgio e por isso mesmo resolveu dissecá-lo sem pudores, sem contudo roubar a grandeza, a dignidade do fenômeno morte — a única certeza que temos nesta vida.


Portanto, eis aí uma verdade inconveniente: para muita gente, não é motivo de qualquer preocupação o fato de ser plenamente possível (e mais comum do que se imagina) viver uma vida madura e bem-sucedida, todavia, absolutamente falsa e oca, sem sentido e ancorada em meras aparências. E quão devastador deve ser, como o foi para o nobre personagem de Tolstói, encarar-se num solitário leito de morte e descobrir que a vida de nada valeu? Uma mentira existencial vivida por décadas, perfeitamente escondida por detrás de uma auto-imagem farsesca.


Cá com meus botões, penso que, de modo análogo ao "medalhão" machadiano, o Ivan Ilitch de Tolstói seria em nosso meio um sujeito muito bem posicionado na hierarquia social. Muito bem relacionado, digamos. Não por circunstâncias fortuitas e casuais, tampouco por mérito propriamente dito, mas pela estrita observância de um método. Cercaria-se, sempre e rigorosamente, de pessoas igualmente bem relacionadas, fortemente preocupadas com a decência, com a opinião pública, títulos e posições, patentes e salamaleques. Festas, jantares, pompas e comemorações calculadas menos para a comunhão e partilha real das afinidades, do que para produzir um efeito público de manutenção do status. O leitor atento certamente anuirá: há de fato mais gente assim do que se imagina. E quão potencializado se mostra tal fenômeno em tempos de redes sociais, de exposição virtual induzida e fomentada por uma necessidade artificial que nos é imposta, numa espécie de culto de Narciso, a que tantos aderem voluntariamente sem ruminar!


É o típico sujeito de outdoor, bem-sucedido perante olhos alheios, que fez da burocracia profissional a razão mesma de sua existência e a espinha dorsal de sua personalidade. Retire desse sujeito o cargo, a rotina, a network, os jogos de influência, o poder de mando por tais meios conquistado, a auto-imagem de segurança, sucesso e autoridade pública por ele idealizada, e logo veremos uma figura chinfrim, miúda. Moralmente desnuda. Sem rumo. Estranha aos próprios familiares, desconhecida dos próprios filhos. Sem opinião, sem substância. Não são dele as palavras que atravessam-lhe a barreira dos dentes, pois apenas repete o que aprendeu a dizer. As ideias que permeiam-lhe a alma flutuam e estouram frágeis como bolhas de sabão. Os fundamentos de sua personalidade sustentam um edifício firme como gelatina. Seus impulsos intelectuais são macaqueação pura, da cabeça aos pés. Sua moral ilibada é a simulação de todas as virtudes — facilmente negociáveis a depender das circunstâncias. O sujeito é, afinal, tudo o que não deveria ter sido. Nosso nobre personagem terceirizou-se, e por esta razão mesma, de nobre nada tinha.


Ivan Ilitch viveu tantos anos debaixo daquela casca de homem correto, escondido atrás de um ofício burocrático que lhe proporcionava prazeres e vantagens, que acabou por esquecer-se de si mesmo no meio do caminho — Nel mezzo del cammin di nostra vita. Esqueceu-se de quem realmente era, de quem um dia havia sido.


É quando, por um golpe do destino, acometido de uma doença terminal, tudo desmorona, restando de pé apenas o remorso por ter jogado a sua personalidade — a essência de sua própria vida — no lixo moral de uma classe a ele totalmente indiferente e constituída por estranhos ilustres. Nosso pobre Ivan é agora atormentado pela certeza de que também ele jamais havia sido verdadeiro com nenhum daqueles estranhos, ainda que tão próximos. Jamais havia se importado verdadeiramente com ninguém. As dores físicas da moléstia atormentavam-lhe menos do que o arrependimento moral — a sensação do vazio de uma vida sem significado, que passou e não volta mais. De nada adiantou-lhe ter levado aquela vida fácil, leve, prazerosa, cercada de bons relacionamentos, esbanjada no bom e no melhor, mas falsa e dissimulada, para qual a opinião pública era infinitamente mais valiosa do que as poucas certezas que todos trazemos guardadas a sete chaves na alma.


Enfim, Ivan Ilitch morreu. E que morra também em nós! Não há neste mundo força mais poderosa do que a personalidade humana. Que o leitor amigo não troque esse incomensurável presente divino pelo prato de lentilhas podres de quem vende a primogenitura. Nem pelas trinta moedas malditas de quem resolveu trair a Verdade com um beijo seco. Que jamais se deixe apaixonar pela bajulação interesseira e comezinha de vampiros e figurões que fugirão em revoada quando nada mais puderem sugar, quando o status que passa e escorre pelos dedos tornar-se obsoleto.


A visão da morte e da eternidade que ela desdobra diante de todos os homens é o único critério confiável para que se possa aferir o que de fato tem algum valor nesta porca vida — as ideias dos náufragos, como sabiamente insistia Ortega Y Gasset. A vida que vale a pena ser vivida e pela qual vale a pena morrer. O resto é nada, senão poeira.


Rafael A. Teles, abril de 2020.

Atualizado: 27 de mar. de 2022

Não há, no mundo, minúscula criatura para quem a existência não seja um sarcasmo.” — G. K. Chesterton, em sua Ortodoxia.

No início da semana tive o grato privilégio de encontrar-me, uma vez mais, com os dois pés em terra firme diante do mar aberto. Eis uma experiência que, para muitos, não carrega em si mesma qualquer senso de novidade; é mero cotidiano banal. Quanto a mim, eu dificilmente conseguiria divorciá-la daquele espanto inicial, quase paralisante, que costuma fazer-se notar sempre que a fragilidade humana adverte-se a si mesma diante da força bruta da natureza.


Aproveitei o ensejo para, no meu mais sagrado íntimo, estimar com gratidão a oportunidade que ali me fora dada. E então rendi graças ao mesmo Deus que, encarnado noutras bandas, sobe em goiabeiras e causa calafrios de afetação e ojeriza em jornalistas ávidos por parir crises no governo. Ali em silêncio, eu deleitava-me; em espírito, contemplava. Era o gozo de uma sensação de pertencimento. Era o lar fora do lar. Algo que em nós só se manifesta diante de um contraste escancarado entre a mesquinhez do nosso papel cotidiano burguês e o mundo natural — esse impávido colosso que não dá conselhos nem pede desculpas.


Tendo então o mar aberto como objeto observável diante de toda a extensão da minha vista — tão lindo quanto mais inóspito e aterrorizante — não pude deixar de me satisfazer na constatação de que não havia ali, no meio daquela imensidão de tons de azul, nenhum burocrata em atividade. Nenhum tirano legislador de homens. Ali não havia reuniões sindicais, prazos prescricionais, multas por inadimplência. Na presença do mar marulhante que abraçava-me os olhos não havia gabinetes e repartições públicas. Eu estava metido até as tampas num tipo raro de portal para outra dimensão onde não havia inveja, vaidade, fuxicos, rabugens, e tampouco opiniões e achismos pedantes. Eureka! Era o fim da palpitaria universal!


De súbito, aliviado me dei conta de que as discussões ideológicas de última moda não eram ali sequer cogitadas. Ali, nenhum direito a mais ou a menos acirrava disputas judiciais, afinal, ubi societas, ibi jus! — berrava em silêncio o oceano azul turquesa, mais eloquente que Marco Túlio Cícero nos debates da República.


Tampouco havia diante de mim a opção entre açúcar e adoçante, Sky e GVT. Ali nunca se ouvira falar em marketing multinível (seja lá o que isto queira dizer), propaganda, carteira de investimentos e clínicas de estética — quiçá as casas de aborto da maldita Planned Parenthood! A penicilina ainda não havia sido descoberta; a roda, sequer concebida em pensamento! Em suma, não havia o menor sinal da sub-realidade dos homens com seus constructos mentais e materiais. Eu estava ali, diante da realidade imediata mesma, apenas, tanto mais pura e perfeita quanto e caótica e indomável o Eterno Legislador. Ou nas palavras de Thomas Mann, muito melhores do que as minhas:


"Nesse lugar reinavam o próprio esquecimento, a bem-aventurada imobilidade, o estado inocente da ausência de tempo. Era o relaxamento praticado com a melhor das consciências, a miragem apoteótica de todo o tipo de negação do imperativo ocidental da ação." — A Montanha Mágica.

É daí que ocorreu-me também um paradoxo existencial momentâneo, na forma de um inevitável tsunami de perguntas às quais eu mesmo deveria responder quem sabe, devido ao fato de serem meus os pés que estavam ali naquele momento apoiados em terra firme.


Quanto sangue foi derramado para que a humanidade se multiplicasse e chegasse ao estágio tecnológico e civilizacional em que chegou, mesmo que todo esse sacrifício não nos acrescente a certeza de um segundo de vida sequer que não esteja submetido ao império do inesperado? Foram-me por acaso outorgados poderes para supor e presumir acerca de realidades alheias? Acaso, fui eleito — criatura chinfrim que sou — tutor das vontades futuras e censor das passadas, pelo mero arbítrio da minha subjetividade?


Com que autoridade poderei eu atrever-me a ignorar, senão subverter — “desconstruir”, “ressignificar” (em bom academiquês corrente politicamente correto e nauseabundo) — a sabedoria e o conhecimento acumulados ao longo de milênios de tradições que me antecedem? Refiro-me ao legado da humanidade que me carrega sobre os ombros para que eu melhor observe e compreenda não só a paisagem que me cerca, mas também o meu lugar nela. Por que fantasiar-me de juiz diante daqueles que, antes de mim, administraram crises infinitamente mais reais e perigosas do que as que hoje roubam-me o sono?


É somente porque um esforço humano descomunal já foi empreendido antes de mim, que hoje posso concentrar-me no saneamento de problemas momentâneos, pseudo-hercúleos, tais como encontrar o controle remoto da TV perdido na sala ou tecer críticas sacais a um tal obscurantismo religioso do Medievo enquanto assisto a documentários na Netflix e sacio a minha sede de justiça com refrigerante Schweppes Citrus. E tudo isso, do alto de minha estatura existencial de gnomo de jardim! É somente porque a grande maioria dos problemas mais severos da humanidade já foram ou estão em vias de ser superados — em grande parte pelos esforços do Cristianismo, by the way — que eu sequer me lembro que eles um dia existiram. Inúmeros. Imprevisíveis. Incontáveis.


Obviamente, toda essa herança que hoje recebo não brotou da noite para o dia como que por um abracadabra. Por quantos séculos a fio (milênios, em verdade) o Cristianismo teve de insistir para que as sociedades mais antigas — aquelas que tinham a escravidão como base — se reorganizassem de forma que a dominação absoluta de um ser humano por outro passasse a ser vista como conduta moralmente reprovável? Como olvidar que o oposto disso — a barbárie — foi realidade soberana ao longo de quase toda a história conhecida da humanidade? Como negar que só enfrentamos hoje o problema da obesidade porque o da fome já não é mais regra geral entre nós? Foi somente depois que os grandes problemas foram superados, que os problemas remanescentes — e os menos passíveis de solução rápida — foram ocupar um lugar central na consciência hodierna do Ocidente.


Enfim, a vida terrena passa como um sopro de brisa na praia. É um tropel de paixões que nos arrasta. Quanto a mim, logrando tomar pé e parte do diálogo das verdades, virtudes e valores universalmente comunicados e partilhados por todos os humanos de todas as eras — aquilo que Mortimer J. Adler um dia chamou de "a grande conversação" —, quem sabe terei cumprido a minha singela obrigação de não comportar-me como um fardo, estorvo para os meus semelhantes. Besta humana atomizada na província do tempo presente. Nulificada. Estupidificada. Melhor dizendo: um caipira da pós-modernidade que todos os dias cospe no prato em que come. Cachorro que morde a mão que o alimenta.


Rafael A. Teles, janeiro de 2019.


foto 06-09-2023 12 40 07_edited.jpg
bottom of page