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INCENDIÁRIO
ENSAIOS SOBRE O FIM DO MUNDO
E FIGURAS DE LINGUAGEM DO ALÉM

Atualizado: 22 de nov. de 2022


Nesta semana a atual Constituição brasileira logra trinta e três anos de existência. Digo atual porque já foram tantas. Sete ao todo. Em 2022 o Brasil festejará os duzentos anos de sua independência. Grosso modo, portanto, de lá para cá já foram sete declarações constitucionais daquilo que entre nós convencionou-se chamar “o Estado brasileiro” no curto período de duzentos anos.


A atual “Carta Magna”, a mais prolixa dentre todas as já promulgadas, é mais nova do que eu. Digo prolixa por tratar-se de documento hipertrofiado que se mete em praticamente todos os aspectos da vida em sociedade, conferindo ao Estado, pela forca (sem cedilha mesmo) do Poder Judiciário, a palavra final sobre tudo o que é certo, sobre tudo o que é a verdade, até mesmo a respeito da cor de nossas roupas de bunda, se preciso for.


Tudo para o nosso bem, dizem. A isto é dado o nome de Welfare State — o Estado do bem-estar social. Um primor! O documento de nossa declaração constitucional de 1988 é de fato tão primorosa que, de seu nascimento para cá, já foi objeto de cento e onze intervenções — as chamadas emendas constitucionais. Fazendo-se as contas, temos aí a média de 3,5 emendas por ano. Uma colcha de retalhos que se atualiza no vácuo.


Mas quem sou eu para ousar dizer coisas assim tão petulantes e amargas a respeito do documento histórico de “refundação” democrática do Brasil? Um Zé Ninguém, certamente. Eu sei quem sou, mas não vem ao caso agora. Por ora, basta termos em mente que o Brasil não nasceu em 1988. Muitas águas pretéritas já correram. Águas profundas.


É por isso que filio-me a Joaquim Nabuco. Não falo eu; fala ele — desde a época em que ainda se produziam por aqui estadistas; não estatistas. Em seus dias de vida pública, o abolicionista Nabuco denunciava uma grave tendência nacional ao que ele denominou política silogística: “É uma pura arte de construção no vácuo. A base são teses, e não fatos; o material, ideias, e não homens; a situação, o mundo e não o país; os habitantes, as gerações futuras, e não as atuais.” (Balmaceda).


Dá para discordar de Nabuco, obviamente. Ao leitor amigo que eventualmente pretenda desafiá-lo, sugiro apenas que antes procure na CF/88 a açucarada definição do controverso salário-mínimo, e terá de reconhecer que Nabuco dispunha de dons quase proféticos, meio mal-assombrados até. O abismo entre a fábula salarial constitucional e o mundo real é comovente. Basta este exemplo por si só.


Ladeado estou, ainda, de Raymundo Faoro, que na década de 50 do século passado já denunciava as causas do “patronato político brasileiro” que, segundo ele, se constitui numa dissonância de ecos profundos entre mundos estanques que não se comunicam. Povo e Estado, entes diametralmente opostos. Erigimos um Leviatã para chamar de nosso, no desejo por construir com a lei, antes dos fatos, uma ordem política e uma vida pública que os costumes, a tradição e os antecedentes históricos não formaram, nem tiveram tempo de sedimentar e cristalizar.


Neste mesmo espírito também Roberto Campos já alertava sobre o texto constituinte que ele chamava de “dicionário de anseios e aspirações”. É que uma ordem social natural não pode ser criada ex nihilo por um punhado de burocratas que se denominam “poder constituinte”. Isto é uma mitologia. Desde o golpe político que instituiu a República em 1889, a ordem natural e pregressa que transcende a organização estatal — ordem essa cristalizada nos valores do povo brasileiro —, tem sido reiteradamente encoberta por tentativas artificiais de se recriar a nação mediante a promulgação de cartas constitucionais desajustadas no leito, como as vítimas de Procusto.


Se a teoria de Faoro acerca do estamento burocrático formado no Brasil (que abarcaria inclusive período colonial) estiver correta, o golpe republicano certamente em muito agravou o problema. É precisamente disto que também nos falava o jurista José Pedro Galvão de Sousa pela expressão “avatares do constitucionalismo”.


Não é por acaso que, semana passada mesma, o CNJ divulgou a funesta notícia de que para os vindouros concursos da magistratura serão exigidos dos candidatos conhecimentos em toneladas de matérias de cunho absolutamente progressista (ideológico, portanto), pautadas por órgãos internacionais através da tal Agenda 2030. Soberania nacional às favas, todos os futuros juízes brasileiros serão conclamados, doravante, a “empurrar a história” (como se isto fosse possível)! Para onde? Não sabemos.


O Direito no Brasil é, portanto, um esforço de legalidade meramente teórica. É como se todos aguardássemos sarcasticamente a criação de uma lei que tornasse todas as demais obrigatórias. Talvez seja mesmo por tal motivo que sequer o Tribunal Constitucional (vulgo STF) vela em suas decisões pela literalidade das normas postas em circulação no ordenamento jurídico, posicionando-se, pelo contrário, acima delas, e mesmo contra elas, a depender do tom político da discussão em torno da matéria.


Não bastasse a problemática já dada, nosso último arrombo constitucional (essa nossa aniversariante da semana) é fruto de uma já conhecida e bem experimentada corrente jurídica denominada neopositivismo — que confere caráter normativo a princípios abstratos, manipuláveis ao gosto do julgador. Em outras palavras: por aqui na Bruzundanga, jargões jurídicos ora ambíguos ora vazios de significado têm força de lei, e a lei objetiva em si tem força de nada. Jargões ambíguos justamente pela aplicabilidade concreta em praticamente qualquer coisa a que se queira defender, inclusive o seu próprio contrário.


Particularmente, gosto bastante — ou melhor, desgosto bastante — do chamado princípio da vedação do retrocesso. É que quem define (com o uso da força) o que é avanço ou retrocesso é o próprio freguês — ou melhor dizendo, o julgador, esse mesmo que, doravante deverá especializar-se obrigatoriamente em pautas políticas de esquerda. A meta é mesmo empurrar a história. O Direito a gente vê depois.


É por isto que no atual ecossistema político brasileiro é possível, por exemplo, sustentar teses jurídicas a favor do aborto (encampadas por juízes da suprema corte), fundamentando-as em princípios como o da dignidade da pessoa humana. Em nome da dignidade da pessoa humana, aniquila-se a pessoa humana no ventre materno — se preciso for, com requintes de crueldade. Cogitar o contrário é retrocesso, o que é vedado.


Sim, isto é possível. No Brasil tudo é possível.


Rafael A. Teles, outubro de 2021.

Atualizado: 1 de fev. de 2022

"E o fato de, sendo velho como és e de com toda a probabilidade só dispores de um restinho de vida, revelares tão tenaz apego ao mundo, com menoscabo das mais sagradas leis, pensas que ninguém te dirá nada?"Platão, Críton, 53D, E.

Ao final de um dia ruim, a cabeça recostada ao travesseiro tornará sempre a lembrar que acaba sendo doce ilusão crer que gozamos autonomia plena sobre nossas vidas — nosso destino, nosso tempo, nossos corpos. É uma modalidade de tolice ingênua supor que cabe unicamente a nós mesmos, como prerrogativa exclusiva, a tomada de decisões sobre toda e qualquer circunstância crucial que diretamente a nós diga respeito (é a minha vida, oras! — costumamos dizer com o indefectível sobrolho levantado) e que todo o resto deve simplesmente dobrar-se ao arbítrio dos direitos de liberdade de consciência que nos foram supostamente outorgados sabe-se lá quando, por sabe-se lá quem.

Uma coisa é ter opiniões muito bem embasadas; constituí-las blindagem intransponível contra as pressões do mundo é outra completamente diferente. É sutileza que as querelas políticas não detectam. Como disse nosso Machado de Assis sobre o “filósofo” Quincas Borba — um de seus personagens mais célebres: uma coisa é ter uma filosofia sobre a morte; morrer de verdade é outra.

Sem pretensões demasiado sonhadoras e descabidas como quem propõe a reinvenção da roda, tratemos aqui brevemente, portanto, das vacinas experimentais que no ano corrente são ministradas em massa pelo mundo afora em decorrência do vírus SARS-CoV-2. Já foi feito o diabo em razão dessa peste.


Quando as pressões do emprego — aquele que é o seu ganha-pão — e das demais responsabilidades cotidianas batem à porta, você logo percebe que não vive sozinho, tampouco encastelado num mundo abstrato de ideias e opiniões existentes, quiçá, apenas na sua cabeça. Desde que o mundo é mundo, sacrificamo-nos em nome do bem comum que exige e espera de nós um certo comportamento, não é mesmo? Segundo consta, afinal, de Adão até aqui nada mudou. Há pessoas que dependem de você. Logo, se a decisão de submeter-se ou não à uma vacina experimental, no ano corrente, significa o sacrifício de uma convicção pessoal em benefício da manutenção da ordem ao seu redor, você certamente acabará tomando a maldita vacina, mesmo contrariado, quando o calo apertar. E acredite: cedo ou tarde ele irá apertar. Num ato de amor, até mesmo um tiro você talvez tomaria caso soubesse que está em perigo algo que vale mais do que a sua própria vida. Afinal, qual é o pai que vê um filho pedindo pão e no lugar lhe dá uma pedra?

Quando a pressão da família é um apelo neste mesmo sentido (há pessoas que dependem de ti e precisam certificar-se de que você se manterá funcional e por perto quando precisarem), você também acaba logo percebendo que precisa abrir mão de certos caprichos individuais para não sacrificar um bem maior que possui: a ordem em que você vive e que dá estruturas materiais, emocionais e psicológicas para todo o resto. Ora, aquelas pessoas (que dependem e amparam-se nesta mesma ordem) são provavelmente as únicas que te amam de verdade neste mundo. Elas lidarão com o seu caixão quando você morrer. Elas limparão a sua sujeira. Assim, nada mais justo que, na atual crise que assola e desorienta a todos nós, façam elas o cálculo de risco — mesmo com toda a quota de ignorância e com as poucas informações seguras de que dispõem — entre não tomar uma vacina experimental impositiva e eventualmente morrer infectado pela doença, suportando, na melhor das hipóteses, um cínico e muito provável cerceamento de direitos fundamentais e liberdades básicas daí decorrentes; ou arcar com eventuais efeitos colaterais e incertos da vacinação precoce e experimental, num ato de fé em que nenhum mal se abaterá sobre ti. Seja como for, façamos nossas apostas na loteria da morte!

Toda vez que entro num estabelecimento onde me é exigido pendurar na cara uma focinheira, mentalizo sermões enérgicos contra a idiotice histérica e o comportamento de rebanho. Quero sem demora mandar para o inferno o primeiro sujeito que me dá a maldita ordem. Todavia, paro logo de xingar o diabo e o mundo em pensamento assim que me dou conta de que aquele sujeito está ali apenas… trabalhando! Ele também tem contas a pagar! Ele também se mata para viver! Há outras inúmeras pessoas que também dele dependem — indivíduos cuja autonomia é tão limitada e ambígua quanto a minha.

A verdade inconveniente é que nossa liberdade de escolha é sempre muito circunstancial, e geralmente alça plena concretude mais na tomada de decisões de caráter interior e “ascético”, por assim dizer, do que de impacto externo. É claro que aqui não ouso generalizar. Afirmo apenas que nosso poder real de escolha diante das circunstâncias que se impõem sobre nós é extremamente limitado. É que o mundo se impõe sem nos pedir a opinião. É um tropel de paixões que nos arrasta. Numa confusão dos diabos dilemas humanos brotam de mil lugares e tamanhos diferentes e são resolvidos numa escala de sutilezas e de infindáveis ambiguidades no tecido social que simplesmente não costuma haver muito espaço — nem muito tempo nem muita inteligência disponível — para que, na grande maioria desses mesmos dilemas, alguém possa declarar-se absolutamente independente do consenso que se impõe sem que, de algum modo, tal postura aumente a quota geral de sofrimentos que é parte indissociável da nossa condição. É por isso que a sanha de querer determinar o curso dos acontecimentos carrega sempre consigo um elemento de tirania que ignora as ambiguidades presentes nos dilemas humanos — é o que todo revolucionário sonha, afinal: transformar ao invés de compreender.

Com isto, não suponha o leitor amigo que faço aqui um convite à apatia, como quem covardemente se entrega inerme aos lobos carniceiros que espreitam em derredor. Mas sim que proponho busca por equilíbrio — balanço sobremaneira necessário para a manutenção do mínimo de ordem que desejamos conservar. Exemplos cirúrgicos da necessidade desse balanço nos dá Jordan B. Peterson em Beyond Order — 12 More Rules For Life, numa de suas famosas regras em que sugere que não critiquemos levianamente as instituições sociais consolidadas; assim como também não as pulsões criativas por novas conquistas e descobertas. Peterson alerta para o dilema existencial que caracteriza a vida humana: é necessário saber conformar-se, ter disciplina e seguir as regras dadas em sociedade — fazer humildemente aquilo que outros fazem; mas é igualmente necessário desenvolver capacidade de julgamento, visão, e de discernir a verdade que guia a consciência para o que é certo quando as mesmas regras sugerem o contrário. O que caracteriza uma personalidade plenamente desenvolvida é a habilidade de administrar tal combinação de fatores. Eis o que mantém o mundo equilibrado na linha tênue entre demasiada ordem e caos excessivo.

Creio haver perfeito equilíbrio (para não dizer divino) no sacrifício vicário do Cristo que não se dobrou ao mundo, vencendo-o no mesmo ato em que se entregava como a vítima da mais injusta das mortes. E não é o Cristo crucificado o que simboliza o termo inicial da nossa sociedade? Paralelamente, há também coerência plena entre a filosofia de Sócrates e sua decisão de tomar cicuta como cumprimento da pena que lhe foi imposta por um tribunal injusto que o condenava pelo “crime” de ter dito a verdade a qualquer custo. E não há também um elemento de sacrifício e de veneno nas vacinas experimentais que hoje nos são ofertadas como um símbolo de ordem necessário para um momento de caos? Pois hoje elas são, para a esmagadora maioria, um símbolo de ordem — ou pelo menos de retorno à ordem perdida —, ainda que para mim, refém das mesmas circunstâncias, sejam a manifestação da desordem.

Eu não acredito que as mães que se renderam ao canibalismo no Holodomor soviético mataram a própria prole por maldade pura — ainda que o elemento maldade se fizesse presente em determinadas circunstâncias de desespero e névoa mental. Imagine ter de decidir se a carne de um filho mais velho já morto por inanição irá servir como a única proteína possível e concebível para os outros menores que restaram vivos (e que têm as barrigas já muito inchadas de só comer por meses a palha do telhado e pedaços de borracha e couro dos sapatos); ou se deixará o cadáver intacto para ser desossado por estranhos mesmo após enterrado.

De igual modo, também não acredito que todo soldado nazista nutrisse apenas puro desprezo e ódio por raças não-arianas pelo único e simples fato de não serem arianas (certamente há nesta equação muito mais elementos explosivos de causa e efeito), ainda que os que assim fossem constituíssem maioria. Talvez nem Hitler.

A imagem que Alexandr Solzhenitsyn nos apresenta em The Gulag Archipelago — aquela da “linha tênue e móvel” que atravessa o coração de todos os homens, dividindo as proporções de bem e mal sempre e inexoravelmente presentes — é uma excelente expressão da dificuldade que é compreender as nuances da realidade caótica em que vivemos.

Se a Santa Igreja Católica (mãe da moral ocidental) não condenou expressamente a utilização em vacinas de material celular de fetos intencionalmente abortados, que poder tenho eu de alterar o curso do senso comum que se impõe por todos os lados e me obriga a ele adequar-me ainda que a contragosto? Sou absolutamente cético em relação à propaganda “oficial” de toda e qualquer coisa relacionada ao tema COVID-19, pelo simples fato de que a engenharia social se tornou, por excelência, a praxis revolucionária de nossa época, maculando a livre circulação de informações em quaisquer meios imagináveis. Chegaria a ser redundante mencionar aqui as misérias do jornalismo moderno, da academia, da política, etc.

Dadas as circunstâncias em que nos metemos, para tudo o que está fora de mim mesmo, qual a importância e o impacto real da minha contrariedade interior? É quase nula! O rolo compressor do mundo não cessará de passar por cima de tudo e de todos que a ele se oponham e continuará impávido tomando seus próprios rumos quando eu não mais estiver aqui e já não haja quem sequer se lembre que eu um dia vivi. Esta é a nossa condição terrena: entre o martelo e a bigorna. Talvez o nosso único poder real de escolha e decisão — talvez a nossa única liberdade real — seja mesmo o de não fazer o mal deliberado e consciente a ninguém (já que do mal inconsciente jamais nos livraremos neste vale de lágrimas) e o de perdoar quem nos faça esse mesmo mal.

Hoje sinto-me contrariado, como que estuprado em minha consciência. Enfim abateu-se sobre mim o dia fatídico em que tive de ceder e submeter-me como cobaia à vacinação experimental sobre a qual pairam mais dúvidas que certezas — e certamente menos altruísmo que interesses econômicos. E o fiz (após muita reflexão) no único intuito de tentar garantir ao menos um pouco de paz de espírito ao meu redor, ainda que sacrificando minha própria paz de espírito. Sinto que perdi mais uma batalha entre tantas que emprego diariamente para encontrar o meu lugar e a minha própria voz no mundo. Se não esmoreço, é que também sei que fiz o melhor que pude desde que o problema das vacinas experimentais — que reduzem pessoas a ratos de laboratório e impõem-se como imperativo categórico — atingiu-me na face, e também na de todos em meu redor.

Discorro aqui, portanto, acerca da experiência e do peso real de ter de ceder a um medicamento experimental nas circunstâncias em que nos metemos, num contexto em que os extremos do pensamento intransigente lançam cortinas de fumaça sobre a experiência concreta. De um lado, demoniza-se as vacinas (e é este o lado ao qual tendo a aderir, já que não creio em altruísmo revolucionário e abomino a voracidade tecnocrática estatal por cerceamento dos direitos naturais do homem); do outro, idolatra-se a ciência como quem, sem saber, ata-se a si mesmo os fios de marionetes do cientificismo — a religião civil do estado moderno ateu. Fato é que estamos todos no olho do furacão, empurrados de um lado para o outro na confusão geral sem ter muito o que fazer além de tentar, com extrema dificuldade e com ferramentas precárias, responder aos inúmeros porquês que brotam a todo momento.

Trata-se definitivamente de experiência que não julgo deva ser elevada ao mesmo patamar de tantas outras que, apesar de infinitamente mais simples (e até mesmo ridículas), realmente envolvem decisões pessoais e diárias entre céu e inferno, e que são por nós miseravelmente tomadas a caminho deste último, de forma bem mais voluntária e consciente. E o leitor amigo certamente sabe quais são. Cada um sabe de si.

Resgatemos também dos porões de nossa amnésia cultural o diálogo platônico entre Sócrates e Críton — em que ao receber a proposta de fugir de Atenas e não submeter-se à condenação de morte por envenenamento imposta por um tribunal injusto, o filósofo argumenta acerca de sua própria condição na pessoa de um velho para quem resta ainda pouco tempo para viver, que assim se agarraria à vida com uma avidez tão imprudente ao ponto de chegar a transgredir “as mais sagradas leis”. Milênios após sua experiência pessoal (cuja notícia só chegou até nós pelos méritos universais e atemporais que nela se condensam — registrados por Platão), Sócrates nos ajuda a perceber como no antagonismo de opiniões e crenças acerca da problemática da vacinação também habita um elemento de apego imprudente ao mundo.

Sim. Seja você contra ou a favor da vacinação nos termos em que a problemática está dada, o medo da morte e o desejo de evitar o sofrimento fazem-se invariavelmente presentes, em ambos os casos. Ainda que outros elementos integrem a equação, de algum modo e em alguma medida, quem implora pela vacina o faz por medo do sofrimento e da morte; quem a rejeita, também. Resta saber a que ponto o apego à vida não faz de nós seres mesquinhos e egoístas e o quanto vale a pena viver a vida em mesquinharia ideológica — seja do tipo que nos isola da sociedade (como bem retratado no filme Into The Wild); seja do tipo que nos esconde de nós mesmos atrás de um ente coletivo abstrato. De todo modo, estamos mesmo entre o martelo e a bigorna. Cabe a nós escolher a melhor disposição mental (e espiritual) para suportar o esmagamento.

Concluo que a solução “tramontina” para tantos dos nossos dilemas divagantes parece mesmo sempre passar pelas velhas lições deixadas por Santo Agostinho, que n’A Cidade de Deus faz o alerta: o que importa mesmo nesta vida não é saber quando ou como iremos morrer, já que todos iremos morrer. Importa mesmo é saber o lugar para o qual iremos quando morrermos. Isto sim é de arrancar o pica-pau do oco. Um tremendo choque de realidade. Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum: o martelo de dez toneladas pode esmagar o meu corpo, mas não pode tocar a minha alma.

Rafael A. Teles, agosto de 2021.

Atualizado: 27 de mar. de 2022

Haverá dentre vós, por acaso, alguma boa alma dotada do velho bom senso – aquela sensatez romanesca em relação à vida cotidiana —, que tenha já ouvido falar, nem que seja de relance, num tal dr. Jordan Peterson? É que esse tal, professor e psicólogo clínico canadense, é bastante conhecido cá pelas bandas do Ocidente pós-moderno desde o ano de 2018, tendo logrado fama e notoriedade após o lançamento de um livro intitulado “12 regras para a vida — um antídoto para o caos”. O livro é um fenômeno incontestável. Verdadeiro best-seller desde que foi parido.


“12 regras” fez tanto sucesso que, vejam só, obrigou seu autor a percorrer o mundo como conferencista e palestrante, em resposta ao caráter “controverso” das ideias ali condensadas. Se bem que, convenhamos, o caráter controverso de qualquer coisa hoje em dia é, em si mesmo (perdoem-me o truísmo), controverso. E tem sido assim desde que, num belo dia, algum progressista liberal comuno-psicótico entediado, cansado deste mundo de cão, enfastiado das muitas horas gastas defronte o videogame, resolveu por em dúvidas a própria identidade biológica. De chofre, sua obstinação justiceira logo mordeu o coração de outros tantos malucos entediados que, por suas vezes, espalharam a novidade como piolhos em cabeça de criança. E já estariam a planejar a quebra d`algum tabu escondido no verdor da grama, dizem as más línguas.


Mas voltemos ao “controverso” prof. Peterson. Foi anunciado nesta semana, pelo próprio, o lançamento da continuação de “12 Regras”: “Beyond Order: 12 More Rules For Life”, ainda sem título oficial em português. E vejam só, a coisa toda não poderia ficar menos curiosa: é que, após o anúncio do lançamento, dezenas de funcionários da Penguin Random House Canada — editora responsável pela publicação da obra —, resolveram formar um grupo coeso e obstinado (eles são sempre obstinados) para boicotar a publicação do livro pela empresa em que trabalham.


O website de extrema-esquerda Vice News dá conta de que, numa reunião com o conselho editorial, havia pessoas chorando ao expressar como Jordan Peterson afetou suas vidas. Funcionários chorando durante uma reunião de trabalho. Chorando. Um funcionário relata como o pai se tornou “radical” após ter lido Peterson; outro, como a publicação de um novo livro afetaria negativamente seu amigo “não-binário” (seja lá que estupidez queira isto dizer).


A geração materialmente mais bem assistida e privilegiada da história do mundo, com acesso instantâneo a informação e conhecimento ilimitado, bem ali, na palma de suas mãos macias — de pele hidratada e aquecida pela tela de um smartphone —, chorando no trabalho. Chorando. A comida é barata e superabundante. A energia é barata. A tecnologia da saúde margeia territórios miraculosos. O tempo livre é gozado de forma plena e confortável com a maior permissividade moral desde Sodoma e Gomorra. A mídia de massas (o novo clero) é tão permissiva e tolerante que se vê obrigada a inventar e falsificar “crimes de ódio” dia sim dia também num notável esforço de criatividade insana que faria Simão Bacamarte pedir arrego (viva Machado!). Tudo para que ninguém morra de tédio e para a maior glória das instituições democráticas. Mas ainda assim, adultos-mirins choram numa reunião de trabalho por causa do lançamento de um livro que contém ideias com as quais não concordam. Trabalhadores intantilóides de uma editora de livros que não querem que livros sejam publicados, comercializados. Uma editora de livros que contrata profissionais que não querem publicar livros. E podem apostar: todos ali certamente aprenderam com a escola e a TV a condenar sem piedade (e sem conhecimento) o antigo Index Librorum Prohibitorum da Igreja Católica, aquela aberração obscurantista (aí, que ódio).


Jordan Peterson é um farol. Uma referência estritamente necessária em nossos dias. Seus grandes feitos não são outros senão a aceitação corajosa e incondicional da realidade e um treino magistral, estoico, na exposição clara e precisa de suas próprias ideias — algo mortalmente ofensivo para os padrões atuais. Enfim, a moral do episódio resume-se, ironicamente, no que o próprio Peterson conclui em uma de suas regras “controversas”: se você acha que homens durões são perigosos, espere até ver do que homens fracos são capazes.


Que o Logos divino conceda àquele homem regar, com as lágrimas acriançadas de seus inimigos, os jardins da existência de quem o lê.


Rafael A. Teles, novembro de 2020.

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