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INCENDIÁRIO
ENSAIOS SOBRE O FIM DO MUNDO
E FIGURAS DE LINGUAGEM DO ALÉM

Atualizado: 22 de nov. de 2022


Não pode mais sair de casa

Não pode mais dizê o que pensa

Não pode mais se defender

Não pode duvidar da imprensa


Não pode nem contar piada

Não pode mais nem beber leite

Não pode mais ganhar dinheiro

E nem pescar o próprio peixe


Não pode mais ir para a igreja

Não pode questionar ciência

Não pode mais rezar o terço

Não pode rejeitar demência


Crer em Deus e não no Estado

Pecado não mais perdoado

Querer cuidar da própria vida

Jesus, que cousa mais fascista


Não pode mais ser branco e macho

Jamais ser bravo nem viril

Não pode mais fazer churrasco

Nem a bandeira do Brasil


Não pode mais criar o filho

E nem votar em gente honesta

Não pode criticar Ministro

Não pode mais nem fazer festa


Não pode trabalhar na rua

Não pode mais prender bandido

Não pode questionar algema

Não pode mais fazer sentido


Não pode tomar sol na praia

Não pode falar palavrão

Não pode xingar gente besta

Não pode tripudiar vilão


Deus do céu, que fim funesto

Democracia é mesmo isto?

E se o poder do povo emana

Contra ele mesmo é exercido


Não temerei a própria morte

Deram-me máscara e refil

Morre mil vezes o covarde

E vive morto o bom servil.


Rafael A. Teles, outubro de 2020.

Atualizado: 17 de mar. de 2023


Eu já ia me esquecendo de confessar algo deplorável da minha parte. Convém falar enquanto há tempo, afinal, de algum modo, a confissão liberta. Carrego em minha persona muitíssimos defeitos. Muitíssimos e mais este: sinto mesmo um certo deleite, meio boçal meio maquiavélico, nada republicano (seja lá que idiotice queira dizer o clichê), ao apelidar jocosamente pessoas desconhecidas com as quais deparo-me por aí. Não todas, obviamente; algumas poucas apenas — as mais peculiares, extravagantes, que destacam-se em cores vivas da multidão de todos os dias, nebulosa e cinzenta.


Engana-se o leitor amigo, caso suponha que o que faço, o faço pelo simples prazer da depreciação vulgar e barata daqueles que me cercam. De modo algum. Há um tom de sadismo em tal hábito deselegante, é verdade. Mas no final das contas, o que almejo em meus devaneios, sempre, é rir-me de nossas misérias compartilhadas para, quem sabe um dia, transcendê-las — desenhá-las em caricaturas verbais. Considero-me artista, em alguma medida.


Além do que foi dito em linhas alhures, não passo: sou um gaiato inofensivo — minhas vítimas nem ficam sabendo do que se passa em minha mente de imaginário delituoso. Não há, neste mundo, minúscula criatura para qual a existência não seja um sarcasmo, dizia G. K. Chesterton. E incluo-me na constatação! Que não se espere de mim virtudes promocionais, nem a bondade de quem se badala como um sino indigno. Ademais, segundo consta, o humor ainda não figura como crime hediondo positivado nos anais das democracias ocidentais. Mais um motivo para, ligeiro, confessar-me enquanto há tempo. Dizem as más línguas (não a minha, neste caso) que até o verdor da grama já anda a meter-se em controvérsias judiciais.


Por sinal, certa feita apelidaram-me “Altiva” durante os anos do ensino fundamental. Altiva era a vilã maldita de uma telenovela nauseabunda à época e, como eu estava naqueles dias, muito mancebo, deixando o cabelo crescer, pegaram-me para Cristo. Dei de ombros. Ninguém morreu. Saímos ilesos e a vida seguiu o seu curso natural numa época em que bullying era resolvido no tete a tete.

Mas voltemos ao que eu lhes dizia. Fizemos uma viagem ao Chile, anos atrás, eu e minha esposa, acompanhados da Nina, nossa pequena menina. Num daqueles maravilhosos passeios pela fria Santiago suburbana fomos parar numa excursão rumo aos parques de neve na Cordilheira dos Andes. Era muito cedo e na noite anterior eu havia bebido pisco o suficiente para garantir uma bela manhã de náuseas, intensificadas pelo frio e pelas poucas horas de sono. Pegamos o ônibus e, no caminho, notei logo um sujeito sentado no banco da frente, à minha esquerda. Melhor dizendo: eu ouvi o sujeito, com os meus dois ouvidos que um dia a terra há de comer. Juro: era alguém que fazia muito mais barulho que todos os demais naquele ônibus — sim, as propriedades do som causam em mim efeitos quase cinematográficos: alto, magricela, com nariz adunco e olheiras fundas, o sujeito estava ali a mastigar amendoins como uma máquina de triturar vidro para reciclagem. A bocarra, meus amigos, enorme, mais aberta que fechada, debulhava enlouquecida. E lançava, de orelha a orelha, os despojos do amendoim moído que chovia por todos os lados enquanto a mandíbula monstruosa mastigava numa velocidade alucinante, febril. Era como se o sujeito comesse pedras. Um terremoto, uma avalanche, uma catástrofe ambiental! Fiquei horrorizado.


Minha reação imediata, de sujeito sarcástico que sou — momentaneamente tornado mais razinza que o habitual pela força do pisco ainda a evaporar-se no suor frio de minhas náuseas —, foi forte demais para que eu pudesse conter, pelo que num ímpeto irresistível, sussurro então ao pé do ouvido de minha esposa: — “Mas que cara escroto!”


Ela, mulher sensata que é, abafou o riso e mais que depressa deu-me um beliscão em reprimenda, sem saber, contudo, que acabávamos de batizar para todo o sempre aquele sujeito peculiar até então para nós sem nome. Escroto nos acompanhou por pelo menos um par de dias durante aqueles passeios pela fria Santiago. Escroto e sua máquina de esquartejar oleaginosas, hoje, deixam-nos belas lembranças.

Assim foi também com o Futum, com a sra. Chinese Crazy e tantos outros — apenas para mencionar alguns de maior destaque e de maior saudade que vez ou outra nos visita. Mas sobre estes, bem... é melhor silenciar. Há confissões que não devem ser públicas. De todo modo, já não tenho agora tempo para maiores detalhes. Mas que fique aqui, desde já, o reconhecimento humilde da minha culpabilidade habitual. É tarde e preciso ir. Despeço-me antes que durma sem escovar os dentes (o que me ocorre com notável frequência). Não só isto: antes que botem-me apelidos sub-ginasianos como Bafo de Boca ou Traqueia Maligna. Nunca se sabe! Como eu dizia, de virtudes promocionais não tenho nada, mas também não nasci ontem. Enfim, não quero arriscar a minha reputação.


Até!


Rafael A. Teles, fevereiro de 2022.

Atualizado: 8 de jan. de 2023

“Não era propriamente conversa: eram frases soltas, espaçadas, com repetições e incongruências. Às vezes uma interjeição gutural dava energia ao discurso ambíguo. Na verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro: iam exibindo as imagens que lhes vinha ao espírito, e as imagens sucediam-se, deformavam-se, não havia meio de dominá-las. Como os recursos de expressão eram minguados, tentavam remediar a deficiência falando alto”. Graciliano Ramos — Vidas Secas.

Passo para confessar-lhes aqui meu espanto habitual, em que, com uma frequência notável, pego-me pensando, pasmado, em como as artes, as belas letras e nossa herança cultural (hoje relegada ao desprezo) realmente explicam a vida cotidiana, de alto a baixo, de cabo a rabo. Neste exato momento, saco da memória do meu coração o mito de Belerofonte, renomado herói da mitologia grega que domou Pégaso, o festejado cavalo alado, todavia, falhando miseravelmente em domar-se a si mesmo. E uma ideia assim me ocorre: o culto da auto-imagem é mesmo uma doença da alma — moléstia da qual nem mesmo os heróis estão a salvo. É que o ser humano realmente sabe falsificar. É um dom. Um anti-dom.


Se assim foi com um semi-deus, o que seria de nós, tão frequentemente semi-humanos? Há mil e um jogos mentais baseados no culto da auto-imagem. Ora, todos nós conhecemos aquele clássico jogo de poses. Aquela enganosa facilidade com que um sujeito qualquer consegue tomar para si, como que por osmose, as mais diversas opiniões acerca de substâncias por ele jamais escrutinadas. Certezas elevadas — não se sabe quando, onde, por quê e nem por quem — à estatura de decretos científicos universais irrevogáveis. Científico e irrevogável: duas palavras que, combinadas, não fazem o menor sentido. Os fatos é que se danem.


De posse desse material opaco, desse saquinho de certezas, ai daqueles que, de modo exibicionista, imaginam-se aptos a desvendar e a impugnar para todo o sempre o caráter alheio, os Céus e a Terra, anjos e demônios. Com o perdão da palavra: é muito amadorismo.


Eis um dos passatempos preferidos de quem resolve fraudar-se a si próprio no culto de uma auto-imagem farsesca: o jogo sedutor da ridicularização de terceiros com base em meros pedaços de ideias até então emitidas pelas vítimas. O material de tal gaiatice, de tal vagabundagem intelectual, é composto de temas isolados, desconexos e flutuantes. Fantasmagorias das quais esses ávidos guerreiros da argumentação narcisística tomam conhecimento irrefletido e de relance, à distância e apartado de um mínimo contexto factual tão necessário para que se capte, sem erro, o verdadeiro peso das intenções e afirmações que os paladinos pretendem ver refutadas à revelia. E tudo isso para, tão somente, colar no oponente, não raro pelas costas, os rótulos do desarrazo, da burrice, da fantasia ou da loucura.


É um pingue-pongue sub-ginasiano que não comporta em si mesmo qualquer apreço pela verdade, senão pelos próprios egos inflados de social justice warriors de botequim em polvorosa, entregues às polêmicas de ocasião. É esporte juvenil, contudo, sem limite de idade! Pornochanchada opinativa para os mais graduados na vida. Nada mais. Em tais níveis de comunicação semi-bestialescos, sedimentam-se a cultura de massas, o debate público nacional e a propaganda oficial de tudo o que nos governa. Pégaso é bem mais exigente do que isso: — “Cavalo arisco!”, diria Belerofonte, após literalmente cair do cavalo.


Outro passatempo retórico para imbecis, deveras estimado por aí, pela alma comfortably numb pós-moderna, é o da negação cínica das ambiguidades humanas. E esse, meus caros... Ah, esse é de lascar! Imaginação moral de macacos de circo é o pré-requisito que se exige para nele triunfar. Falo daquele corriqueiro maniqueísmo social, maledicente e fofoqueiro, que condena a totalidade do caráter, da vida e da obra de terceiros, com base no mero critério 8 ou 80. Sempre contra tudo e a favor de não se sabe o quê, o atleta obstinado mantém o adversário cativo eternamente num dualismo chinfrim ao menor escorregão ou acerto mais banal. É como se a parte respondesse pelo todo, como se um segundo julgasse a eternidade, ou como se o rabo subjugasse o cão. O senso de proporções simplesmente não entra em campo, pois estragaria a pelada. Várzea.


Mas nestas olimpíadas da insensatez, nada se equipara, em matéria de vícios e temperamentos, ao jogo de aparências — sempre disfarçando as evidências (trocadilho maldito e inevitável, eu sei) — tão apreciado por tantas figuras que por aí mais se apresentam como pessoas esclarecidas. E aqui, logo damos conta de que o "medalhão" machadiano é um tipo humano mais comum do que se imagina: caracterizado pela idolatria dos títulos e posições, patentes e salamaleques, entregues no altar do poder e do dinheiro.


Jogatina mental que pode ainda assumir, conforme as circunstâncias o exijam, a forma do bom e velho senso comum de religiosidade pouco experimentada na alma, meramente estética e rasa, tão facilmente sofismável e piegas. Farisaísmo, talvez. A grande jogada resume-se, neste caso, em exigir do adversário total e absoluta constância e coerência inabalável em matéria de bom-mocismo, ignorando-se por completo que é justamente a incapacidade humana de absoluta constância em matéria de coerência — nesta existência terrena da qual ninguém escapa com vida — que fez do senso da transcendência o fator infalível e irrevogável de religação do homem caído e miserável e a perfeição da eterna Verdade divina, alcançada pelo dom do perdão: per donare. Dar aquilo que falta. Completar.


Hoje e em todas as eras, o homem medíocre é sempre o mesmo que deleita-se em tais folias mentais e em outras tantas efemeridades, culturalmente reproduzidas como que em escala industrial de bovinismo humano. É o ”senhorzinho satisfeito” do qual dizia Ortega Y Gasset em A Rebelião das Massas: homem sempre dentro da média, perfeitamente democrático (sem sequer saber o que isto queira dizer), politicamente correto, eclético e esclarecido, confortavelmente identificado com o “espírito de seu tempo” na troca de figurinhas carimbadas com seus pares de semelhante piedade verborrágica e estéril de correspondências reais com os fatos da realidade. Rico em direitos garantidos por sabe-se lá quem, tanto sem inimigos quanto mais impossibilitado de reais conexões humanas substanciais, cujo critério supremo de comunhão é sempre o mesmo: o duplo padrão de exigência moral, implacável para com o outro e para com a sociedade em geral; sempre benevolente para si próprio. Afinal, o mundo é pesado demais para que ele não o deposite logo sobre ombros alheios, como bode expiatório de si mesmo.


“O homem é o lobo do homem”, sugere-nos a teoria hobbesiana. Quanto a mim, arrisco dizer que o homem é o lobo do outro homem, enquanto eterna ovelha de si próprio. Eis a crueza da vida aqui neste vale de lágrimas: nada somos além de cordeirinhos cevados a caminho do matadouro, do fogo. Assim como tão somente após muito pastar e chafurdar percebeu o filho pródigo da parábola bíblica, “cair em si” parece ser o único remédio capaz de desatar a venda da mediocridade existencial — a linha tênue entre ser lobo ou ovelha. A percepção de que ambos coabitam em simbiose dentro de nós todos (o que nos é explicado pelo simbolismo cristão do pecado original), é o que no fim nos permite manter baixas e realistas quaisquer expectativas insensatas e tolas de ganho ou de aceitação perante a sociedade heterogênea que nos cerca: por vezes matilha maliciosa; por outras, rebanho entorpecido.


No fim, somos todos semelhantes a cadáveres inconformados, empenhados a disfarçar a podridão com perfumes baratos enquanto esconjuramos, sem piedade, as moscas infectas que atraímos.


Rafael A. Teles, janeiro de 2022.

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