Há um romance da literatura nacional — Nossos Ossos, por Marcelino Freire, livrinho curto e despretensioso — que narra, sem o menor pudor, a desgraça de Heleno, dramaturgo nordestino, sem futuro e sem destino, homossexual de meia-idade, que se muda para São Paulo, em busca de melhores oportunidades profissionais. Soropositivo, mergulhado numa vida absolutamente devassa, já que literalmente envolvido, até as pregas, com garotos de programa, michês e gigolôs de vida lassa, o personagem acaba por ver-se na obrigação de fazer o trajeto de volta a sua terra natal, para devolver a uma família humilde o corpo de um garoto assassinado, um prostituto com o qual ele havia se relacionado e que seria incinerado como indigente, não fosse o seu esforço iminente para dar ao cadáver um enterro digno e, minimamente, uma última morada.
Heleno mais tarde descobre que o “boy” havia sido morto com cinco estocadas à faca, por um conhecido de longa data, conterrâneo seu — um primeiro affair, antigo namorado, com quem há muito havia planejado longamente a nova vida de glórias e vitórias em São Paulo. Tendo então, como trama, uma espécie de triângulo amoroso marcado por absurda promiscuidade alimentada por frustrações pessoais, o êxodo nordestino e o submundo da prostituição compõem o pano de fundo desta tragédia à brasileira que se passa num Brasil profundo, urbano. Vale a leitura, absolutamente.
Com o leitor amigo, deixo aqui, algumas brevíssimas impressões, nem por isso menos relevantes:
A primeira delas é a percepção imediata — sempre dura e confrontadora, sempre demolidora de moralismos e de virtudes promocionais auto-proclamadas — de que há, no protagonismo de uma vida, por trás de uma biografia, de uma história, sempre um ser humano, sempre uma criatura idealizada e empurrada para existência por vontade maior, divina, por uma inescapável lei que nos une. Há sempre ali uma potência, individualizada e autônoma, por mais estéril e miserável que seja, aos nossos olhos, aquela geleia de existência em frangalhos. É uma alma imortal que protagoniza desgraças e carrega consigo um mundo, um submundo, um abismo profundo, uma infinidade de erros e acertos, sonhos e desencantos, que jamais passarão por nossas cabeças justíssimas, castíssimas e teologais, quando, do bem-bom de nosso conforto burguês habitual, do bico de nossas Schweppes Citrus, da ponta dos nossos controles-remotos, ousarmos dissecá-las como quem espeta batráquios de laboratório, sem amor, sem caridade, para depois lançá-las bovinamente ao lixo, como o papel de quem com ele acabou de limpar a bunda, em desprezo total e asco absoluto.
A realidade dramática de um submundo que não nos toca nem de longe — e de práticas que nos são estranhas e avessas —, não deveria ser negligenciada enquanto experiência humana, negada enquanto fato ou possibilidade, só porque não dói em nossos calos, não fede em nossos narizes, não suja os nossos sapatinhos de cristal, ainda que, como medida de elevada assepsia moral, seja mantida higienicamente à distância, nos recônditos do esquecimento. Já que, da realidade mais cruenta da vida, geralmente isolamo-nos, como se ela simplesmente não existisse, para compreender a intransponível condição humana, que nos é própria, é preciso antes aceitá-la, sem romantizá-la em suas mazelas, mas também sem os disfarces cínicos de quem empurra sujeiras habituais para debaixo de um tapete roto.
Para não acovardar-se, para não petrificar-se, para não alienar-se em bovinismos auto-referentes, vale muito encarar certas realidades de perto, periodicamente, ainda que pelo testemunho ou esforço imaginativo de terceiros (e aqui residem os muitos méritos da boa literatura). Rememorar as realidades brutais que nos circunvizinham, sempre que possível e necessário, é conditio sine qua non para, só assim, quem sabe, podermos transcendê-las com a sensibilidade de quem reconhece que a vida humana vai do céu ao inferno num piscar de olhos, num espectro do qual ninguém escapa. Ninguém. Sagrado e profano serão sempre, afinal, duas realidades coexistentes dentro de uma mesma alma humana, para além da mito-poética religiosa. Nisto, no cruento, se enquadra o bairro do Itatinga, na cidade de Campinas. Nisto, no absurdo, inclui-se a Cracolândia. Nisto, no esquecido que ainda grita e ecoa, compreendem-se os recintos que um dia serviram de mercados de escravos no Brasil, como o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro.
A segunda impressão que fica, como corolário da primeira, é a de que mesmo a mais desgraçada das gentes anseia por transcendência, mesmo que suas esperanças estejam fundadas em areia movediça, em palha, em fumaça de erros grosseiros e de desorientação geral. Mesmo quando deliberadamente aposta no erro — seja por ignorância, seja por incoerência —, a mais desgraçada das gentes ainda é capaz de idealizar uma “ética” que lhe pareça minimamente verdadeira, pela qual lhe seja possível extrair algum alento, algum oxigênio, algum sentido para uma existência sem sentido. Lembro-me de uma frase em Dostoiévski pela qual se diz que “o único objetivo de todo movimento popular consiste em procurar por Deus”. Eu diria que todo ímpeto, todo pulso, todo esforço individual, consiste exatamente em trilhar este mesmo percurso, esta mesma jornada – nossos hipotéticos e particulares Caminhos de Santiago, todos levando ao mesmo lugar, numa espécie retorno ao Éden. Santo Agostinho já o disse! E não só o Bispo de Hipona. Também Dante já se encontrava perdido “nel mezzo del cammin di nostra vita”, conforme relata-nos a primeira página da Comédia.
Faço ainda o diálogo inevitável entre Nossos Ossos e a tragédia Antígona de Sófocles, no reconhecimento da grata possibilidade de dar-se ao mesmo problema, respostas igualmente humanas e nobres, mesmo que partindo de consciências situadas (e sitiadas) em posições distantes do ponto de vista da moralidade e, quem sabe, até antagônicas, na escala civilizacional.
Sófocles é, muito provavelmente, a apoteose mesma da tragédia grega. Registrada na trilogia tebana do Édipo-Rei, Antígona é a história de uma moça da nobreza real que lutou contra a tirania do Estado para ter garantido o direito de enterrar o cadáver do irmão (considerado um inimigo nacional), desafiando as consequências de sua desobediência civil e pagando por isto com a própria vida. É que o tirano de plantão (ah… eles sempre presentes) havia assinado um decreto proibindo que o corpo do rapaz fosse enterrado, como punição por crimes de guerra, cometidos contra a pátria. A irmã, por sua vez, a despeito de qualquer convenção humana, trazia inscrita no coração a lei natural e eterna que nos dá a sensibilidade para perceber o óbvio ululante de que qualquer pessoa tem direito a um funeral digno, ainda que o Estado – a autoridade dominante em qualquer época – ouse dizer e impor o contrário, na forma da lei positiva e do despotismo que simplesmente ignora preceitos religiosos e transcendentes.
Nenhum ser humano merece apodrecer ao ar livre, tendo as carnes devoradas por cães e urubus, sem as condolências, sem o encaminhamento da alma ao “barqueiro”. Em Homero, também o guerreiro impiedoso Aquiles se compadece do velho Príamo – inimigo devastado na condição de pai –, e devolve-lhe o corpo de seu filho Heitor, para que seja velado, num ato de respeito e trégua entre inimigos, ainda que pelo curto período do luto. Uma lei que nos proíba de enterrar nossos mortos, nossos ossos, jamais será, de fato, uma lei. Qualquer coisa será; será tudo menos lei.
Heleno tem um pouco de Antígona. Nossos Ossos tem um tom de tragédia brasileira — elevada ao melhor sentido grego da expressão. É que Antígona lutou contra a presença invasiva do Estado; Heleno lutou contra ausência dele, ou melhor, contra a mais pura indiferença. Aqui não me interessam os arranjos (ou desarranjos) estilísticos do autor. Muito menos os seus posicionamentos e opiniões políticas de ocasião, das quais muito provavelmente divirjo. Interessa-me a resposta dada ao problema da morte, satisfatória, a meu ver: o fato de que um promíscuo da pior espécie, mesmo chafurdando na lama de todos os seus pecados, vícios e desgraças, pôde ter viva a consciência superior, em lampejos de caridade, de que a morte merece respeito, não querendo estar em falta com essa lei natural e eterna que nos iguala a todos e, assim como Antígona, fez o que estava ao seu alcance para honrar um outro ser humano que com ele cruzou caminhos, secreções e misérias neste vale de lágrimas.
Rafael A. Teles, abril de 2022.