Prometa ter sensibilidade. Prometa a si mesmo ao menos tentar. Plantar, regar e colher. Nisto está também o educar-se. No olhar, no que se diz, no que se faz, no trato com outra alma humana. Exercite-a como um músculo da virtude, uma ferramenta da inteligência. Saia de si mesmo para ver melhor, seja ousado. O julgamento pode esperar, o deduzir e o exasperar, a rabugem, o veneno que escorre tão fácil pela língua dúbia, bifurcada. O ensimesmado é um isolado, um patife ensaboado, um abutre que não sabe que é.
Eu sei que não é fácil. Somos espinho, somos pedra, somos o punho de Caim, a maçã podre de Eva. A insensibilidade é uma cegueira profunda, tipo muito peculiar de maldade (a pior de todas, talvez), ao mesmo tempo rude e sofisticada, faca cega e afiada, mais violenta que um soco, mais humilha e arde que um tapa na cara.
O filho muito amado de um homem morreu atropelado. No peito daquele pai ficou um buraco de bala. Ferida aberta e recente. E é no dia-a-dia mesmo que ele se esconde. É na agitação do mundo que procura anestesiar-se, esquecer que o peito dói. Foge de si mesmo na multidão, como quem busca diluir-se. Perguntado à queima-roupa sobre como tem passado, sobre como vai o filho, ele se desmonta mesmo de pé, ali mesmo entre as mesas do restaurante, e se desliga por um segundo que se arrasta como por horas, como se a alma desaparecesse de repente. Se esmorecem os lábios como se ele fosse sugado para uma cena longínqua. Treme o canto do olho marejado, a voz se embarga rapidamente e a alma submerge num mar de angústias, até que a lembrança resfolegante reaparece devolvendo-lhe a consciência de si. Memória é dom e desgraça, um tirano assediador. É que eu perdi o meu garoto. Ele foi acidentado outro dia. A vida quis assim. É muito difícil, minha esposa não vai bem. Tem que se apegar muito a Deus, ficou a minha netinha.
Jamais houve tanta dor num rosto, dor metafísica, além do que se vê, mas que se sabe estar ali. Incontáveis filhos muito amados morreram deixando para trás os pais, como aleijados, como homens e mulheres num deserto errantes, desfigurados de um braço ou de uma perna. Eles são muitos, se repetem, mas nenhum se iguala. Quantos desde tempos imemoriais? Desde Príamo e Homero? Não há resposta. Só há certezas. Nenhum pai deveria ver o filho morrer. O evangelho de Deus para os homens é a carta de um pai que vê o filho morrer, tamanha é a verdade que se encerra nessa dor que fende o tempo, que rasga o véu como manteiga. Nenhuma dor jamais será igual a outra. Aquele filho e aquele pai serão sempre o mundo um para o outro. O que sou eu senão um abutre, poço de inconsciência? Tu, se reparares bem, verás que és também. Não sejamos. Façamos um pacto.
Rafael A. Teles, novembro de 2024.